A Globo não fez campanha; fez bom jornalismo, O Globo, 24/09/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A Globo não fez campanha; fez bom jornalismo", O Globo, 24/09/2003

Para comemorar os 34 anos do "Jornal Nacional", a TV Globo pôs no ar uma série de chamadas comemorativas muito simples: flashes dos principais momentos da Histó- ria do Brasil e do mundo que o telejornal líder de audiência nas últimas três décadas exibiu. Foi uma pequena mostra dos serviços que o "JN" presta ao Brasil, o único órgão de imprensa presente, graças às afiliadas, em 115 municípios, nos 26 estados do país e no Distrito Federal, com equipes completas de jornalismo. Tudo feito por brasileiros, para brasileiros, em defesa do Brasil.

Mas não escrevo para elogiar o "JN". Escrevo porque, em uma daquelas chamadas, uma pequena imagem do repórter Ernesto Paglia pode ter contribuído para rechaçar de vez uma das mais graves acusa- ções que o "JN" já sofreu: a de que não cobriu o comício das diretas, na Praça da Sé, em São Paulo. Uma acusa- ção que está, inclusive, em muitos livros. Leiam a seguir uma pequena mostra:

Primeiro, Eugênio Bucci, em seu livro "Ética e imprensa", editado pela Companhia das Letras em 2000, na página 29:

"No dia 25 de janeiro de 1984, o 'Jornal Nacional' tapeou o telespectador. Mostrou cenas de uma manifestação pública na Praça da Sé, em São Paulo, e disse que aquilo acontecia em virtude da comemoração do aniversário da cidade. A manifestação era real: lá estavam dezenas de milhares de cidadãos em frente a um palanque onde lideranças políticas discursavam. Mas o motivo que o 'Jornal Nacional' atribuiu a ela não passa de invenção. Aquele comício nada tinha a ver com fundação de cidade alguma. A multidão estava lá para exigir eleições diretas para Presidência da República. O Jornal Nacional enganou o cidadão naquela noite — e prosseguiu enganando durante semanas a fio, ao omitir as informações sobre a campanha por eleições diretas. Para quem só se inteirasse dos acontecimentos pelos noticiários da Globo, a campanha das diretas não existia."

Mario Serio Conti, em seu livro "Notícias do Planalto", também editado pela Companhia das Letras, em 1999, nas páginas 37 e 38, foi mais longe:

"Em 25 de janeiro de 1984, o patrão (Roberto Marinho) estava irredutível. Para aquele dia, aniversário de fundação da cidade de São Paulo, fora marcado um ato público na Pra- ça da Sé. Centenas de milhares de pessoas compareceram. No palanque se encontravam desde o presidente do PT, o Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva, até Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o PMDB, passando por cantoras, compositores, atores e atrizes de novelas da Globo. O próprio apresentador da manifestação, o locutor de futebol Osmar Santos, era um astro da Rádio Globo. Com a Bandeirantes e a Manchete dando flashes ao vivo e dedicando a maior parte de seus noticiários à manifestação na Sé, Boni imaginou uma maneira de mencioná-la, ao mesmo tempo que cumpria a ordem de não noticiá-la. Numa reunião na sala de Armando Nogueira, determinou que uma repórter falasse da Praça da Sé, em menos de vinte segundos, que ali estava sendo comemorado com um show o aniversário de São Paulo. Não deu certo: além de omitir, a Globo foi acusada de distorcer a verdade."

Até mesmo no prestigiado "Dicionário Histórico Biográfico", da Fundação Getúlio Vargas, na página 4.921, está dito:

"Em 1984, o país viveu o ápice da campanha das diretas para a Presidência da República, desencadeada no final do ano anterior. Ignorando-a inicialmente, a Globo dava pouco espaço, nos noticiários, aos grandes comícios e passeatas que impulsionaram a campanha. O comício da Praça da Sé de São Paulo, em janeiro, recebeu uma cobertura de poucos flashes que apenas mostrava artistas, caracterizando o evento como uma comemoração do aniversário da cidade e desprezando a presença de dez governadores de estado."

Luiz Felipe Miguel, em seu artigo "Mídia e manipulação política no Brasil", publicado em "Comunica- ção e política", volume VI, página 124, segue a mesma linha:

"Outro episódio significativo se refere à grande mobilização popular exigindo o retorno das eleições diretas para a Presidência da República, em 1984 — e que a Globo procurou ignorar. No dia 25 de janeiro, um comício em São Paulo reuniu cerca de 300 mil pessoas em defesa das diretas, dando início a uma série de grandes manifestações populares. No 'Jornal Nacional', porém, o comí- cio foi despido de seu caráter polí- tico e noticiado como se fosse um espetáculo comemorativo do aniversário da cidade de São Paulo."

Deve haver muitos outros livros, a produção acadêmica no Brasil nessa área aumentou muito nos últimos anos. O que diminuiu foi a ênfase no método, na pesquisa. Bastava uma visita ao Centro de Documentação da TV Globo, onde todas as reportagens estão arquivadas, para que acusações tão graves simplesmente não existissem. A reportagem de Ernesto Paglia foi ao ar na noite do comício, realizado no dia 25 de janeiro, entre outros motivos, justamente por ser o aniversário de 430 anos da cidade, um feriado. O aniversário é o mote do locutor, e o repórter, de fato, inicia a reportagem por ele, mas, em seguida, fala do comício, diz que ele pede as diretas para presidente, descreve o que aconteceu e termina com o discurso do então governador de São Paulo, Franco Montoro. Leiam a transcrição:

"Repórter: 'São Paulo, 430 anos, nove milhões de brasileiros vindos de todo o país. A cidade de trabalho. São Paulo fez feriado hoje para comemorar o aniversário. Foi também o aniversário do seu templo mais importante, a Catedral da Sé. De manhã, na missa, o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns lembrou o importante papel da Catedral da Sé nesses 30 anos em que ela vive no coração da cidade'.

Dom Paulo: 'Nessa igreja se promoveu praticamente a libertação de um povo que quer manifestar-se como povo. Eu acho que isso é fundamental para uma igreja mãe que é tratada com tanto carinho'.

Repórter: 'E junto com a cidade aniversariou também hoje a Universidade de São Paulo. A USP completou 50 anos de existência. A ministra da Educação, Ester Figueiredo Ferraz, foi à USP hoje. Ela falou da importância da Universidade com suas 33 faculdades e 45 mil alunos e assistiu a uma inesperada manifestação de estudantes e funcionários. Eles tomaram o anfiteatro com faixas e cartazes e pediram verbas para a educação, eleições diretas para reitor e para presidente da República.

Mas à tarde, milhares de pessoas vieram ao Centro de São Paulo para, na Praça da Sé, se reunir num comício em que pediam eleições diretas para presidente. Não foi apenas uma manifestação política. Na abertura, música, um frevo do cantor Moraes Moreira. A Praça da Sé e todas as ruas vizinhas estão lotadas (panorâmica da multidão e das ruas ao lado, tomadas). No palanque mais de 400 pessoas, deputados, prefeitos (imagens do palanque) e muitos artistas, Christiane Torloni, Regina Duarte, Irene Ravache, Chico Buarque, Milton Gonçalves, Ester Góes, Bruna Lombardi, Alceu Valença, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil. A chuva não afasta o povo. Os oradores se sucedem no palanque e ninguém arreda pé. O radialista Osmar Santos apresenta os oradores. O governador de S. Paulo, Franco Montoro, fez o discurso de encerramento (imagens e som de Montoro, ao lado de Ulysses Guimarães, Orestes Quércia, Brizola e Lula)'.

Franco Montoro: 'Um dos passos na luta da democracia. Houve a anistia, houve a censura, o fim da tortura; mas é preciso conquistar o fundo do poder que é a Presidência da República'".

A fita está à disposição. Não houve omissão. Está tudo na reportagem de Paglia. Já na USP, a menção, com imagens, do protesto dos estudantes pedindo diretas para presidente. E as imagens da praça lotada, o motivo do comício dito com todas as letras, a ênfase na disposição cívica do povo "que não arreda pé nem com a chuva", os políticos mostrados no palanque e o discurso final, na voz de Montoro, forte, incisivo, em tom de convocação. Sim, na noite de 25 de janeiro de 1984, os brasileiros se informaram na Globo de que um comício pelas diretas se realizara em São Paulo.

Como sempre, estavam bem informados. Desde o momento em que Dante de Oliveira protocolou sua emenda na Câmara dos Deputados, em março de 1983, a Globo cobriu todos os passos da luta pelas diretas. Já em março daquele ano, o então repórter Antônio Britto, numa reportagem para o 'Jornal Nacional', entrevistando o então líder do PMDB Freitas Nobre, contou aos brasileiros qual seria a estratégia da oposição para aprovar a emenda. E nos meses seguintes, foram inúmeras as reportagens a respeito, não somente sobre a tramitação da emenda, como também sobre as manifestações populares (a Globo cobriu os comícios, desde a caminhada pelas diretas no dia 13 de janeiro de 1984).

A minha tese é que não há má-fé por parte de quem difunde a acusação de que a Globo não cobriu o comício de São Paulo. Eu sou fortemente inclinado a supor que a Globo é tão querida, e tão reconhecidamente competente, que muitos não a perdoaram por não ter feito uma campanha pelas diretas, no estilo das que faz em época de Copa do Mundo. Esquecem-se de que a ditadura ainda estava forte, tão forte que as diretas foram votadas sob a vigência das medidas de emergência, um dispositivo constitucional, decretado nas vésperas da votação, que proibiu manifestações populares em Brasí- lia (lembram-se do general Newton Cardoso, em seu cavalo, dando chicotadas em carros presos num engarrafamento?) e proibiu a transmissão por emissoras de rádio e televisão da sessão do Congresso Nacional que acabaria rejeitando as diretas-j á .

Não, a Globo não fez uma campanha, mas não deixou de fazer bom jornalismo .