"Assistencialismo sem foco", O Globo, 07/02/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Assistencialismo sem foco", O Globo, 07/02/2006

O Brasil tem um generoso programa de assistência social. A questão é saber se tem eficiência para gerilo e dinheiro para mantê-lo. No meu último artigo, mostrei que há indícios de que o dinheiro do Bolsa-Família está superdimensionado e, pior, não está atingindo apenas o público-alvo. Assim, o governo gasta bilhões com quem não precisa, deixa de atender a quem necessita e o desperdício faz faltar dinheiro em áreas cruciais: na educação, o principal instrumento para que a pessoa saia efetivamente da pobreza, e em investimentos em infra-estrutura, que prepara o país para o crescimento econômico e a geração de empregos. É triste: o pobre fica ao mesmo tempo sem o dinheiro, sem a educação e sem o emprego. Fica eternamente pobre. O Bolsa-Famí- lia não é o único caso, nem o governo Lula é o único a errar.

Em 1993, o Congresso aprovou a regulamentação da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), criada pela Constituição de 1988. Por ela, idosos de 67 anos ou mais e deficientes físicos incapacitados para a vida independente e para o trabalho têm direito a uma aposentadoria de um salário-mínimo, desde que tenham renda familiar per capita inferior a um quarto de salário-mínimo. A partir de outubro de 2003, a idade mínima caiu para 65 anos. Ao idoso e ao deficiente, basta declarar o rendimento, não precisando comprová-lo, um direito que a lei lhes reconhece. De 1996, quando o benefício começou a ser pago, até 2004, 933 mil benefícios foram concedidos a idosos e pouco mais de um milhão a deficientes. Ocorre que uma análise da PNAD mostra, mais uma vez, que os governos (tanto FH quanto Lula) podem não estar controlando como deveriam a concessão da aposentadoria especial para que somente aqueles realmente necessitados sejam beneficiados.

Vejamos o caso dos idosos. Nos últimos dez anos, a população de idosos na faixa de renda prevista pela lei tem sofrido apenas pequenas alterações, apesar da concessão dos benefícios, um indicativo de que o dinheiro pode estar indo para idosos de outras faixas de renda. De 2001 para 2002, foram concedidas 115.550 aposentadorias pela Loas, mas o número de idosos com 67 anos ou mais com renda per capita de até um quarto de salário-mínimo sofreu uma redução de apenas 22.078; entre 2002 e 2003, mais 80.278 aposentadorias foram concedidas, mas o número de idosos pobres aumentou em 11.831; e de 2003 para 2004, embora o governo tenha concedido mais 268.289 aposentadorias, o número de idosos pobres se reduziu apenas em 31.585. De 2004 para 2005, foram concedidas mais 143.252 aposentadorias, mas o efeito delas no público-alvo só poderá ser medido quando sair a próxima PNAD.

Mesmo considerando que todo ano mais pessoas chegam aos 67 anos, a PNAD revela que o número dos que chegam à idade limite não é nem de longe suficiente para explicar as discrepâncias. O mesmo acontece com o número daqueles idosos que, mesmo recebendo a aposentadoria, continuam com renda per capita baixa. Os indícios apontam, portanto, para um vazamento grande. Embora a PNAD não permita o mesmo exercício com os deficientes físicos, o quadro deve ser parecido. O governo diz que, de dois em dois anos, as famílias beneficiadas são visitadas, em convênio com as prefeituras, para que se confirme se estão dentro do público-alvo (algo entre 200 mil e 300 mil famílias todos os anos). Até aqui, um milhão de beneficiários foram visitados. Entre cinco e sete por cento dos benefícios foram cancelados, um número muito pequeno, diante do que mostrei acima.

Há outro problema grave. Segundo a PNAD, havia, em 2004, 3,7 milhões de famílias urbanas em que um idoso de 65 anos ou mais recebia uma aposentadoria de um salário-mínimo (excluí as áreas rurais para não considerar aqueles que recebem a aposentadoria rural, um benefício diferente daquele que estamos analisando). Todos recebem o benefício porque contribuíram ao longo da vida ao INSS ou porque trabalharam como funcionários públicos. A renda obtida pela aposentadoria se mostra importante: sem ela, um milhão e quatrocentas mil famílias, 38,4% do total, passariam a ter uma renda per capita de meio salário-mínimo, o que as deixaria abaixo da linha da pobreza. Esses mesmos números nos colocam diante da sinuca: do jeito que estão desenhados, os benefícios concedidos pela Loas trazem embutidos em si uma lógica que os perpetua. Hoje, 933 mil idosos conseguiram uma aposentadoria sem contribuir e 3,7 milhões porque ou contribuíram ou trabalharam tempo suficiente no serviço público. A pergunta que se faz é: que incentivo para pagar o INSS tem o cidadão que hoje recebe um ou dois salários-mínimos se ele sabe que, na velhice, quando as despesas são menores, terá assegurado, desde já, um benefício de um salário-mínimo? Nenhum. O que deve pensar o sujeito que contribuiu durante anos, conseguiu sua aposentadoria de um salário-mínimo, fundamental para a sua subsistência e, hoje, percebe que um amigo ao lado, que nunca contribuiu, conseguiu aposentadoria igual? Isso acabará por levar aqueles que hoje trabalham na informalidade a não ter motivos racionais para contribuir, o que levará multidões a chegar à velhice, quando já não podem mais trabalhar, sem renda e sem apoio, tornando a aposentadoria especial da Loas um imperativo.

Mais uma vez, não discuto o mérito da Loas, mas a sua enorme dimensão, provocada por falta de foco. Em 2004, a Loas consumiu R$ 7,6 bi contra R$ 5,8 bi do Bolsa-Família, um total de R$ 13,4 bi. Em 2005, o governo gastou R$ 6,5 bi com o Bolsa-Família e R$ 9,3 bi com a Loas, um total de R$ 15,8 bi. Enquanto isso, a educação teve no ano passado apenas R$ 7 bi para investimentos. Um programa assistencial bem gerenciado poderia atender aos realmente necessitados, gastando uma pequena proporção do que se gasta atualmente e liberando uma enorme soma de dinheiro para educar os nossos jovens.

Enquanto não mudarmos esse quadro, nosso futuro não será muito diferente do nosso presente.