"Bolsa-Família e Educação", O Globo, 17/10/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Bolsa-Família e Educação", O Globo, 17/10/2006

Qual o efeito do Bolsa Família na educação de nossas crianças? A recente divulga- ção da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005 é um bom momento para que tentemos responder a essas perguntas. O leitor verá que o resultado é constrangedor. No momento em que o Bolsa Família atende a 11,1 milhões de famílias, só uma coisa explica por que, desde que foi implantando, é nulo o efeito do programa nas estatísticas sobre crianças fora da escola e crianças trabalhando: o seu compromisso com a educação é apenas formal, não é real, não é para valer. O leitor que se aventurar pelos números que mostrarei a seguir terá uma visão clara sobre isso.

Em 1995, 9,8% das crianças de 7 a 14 anos estavam sem estudar. Em 2002, graças ao efeito de medidas como o Bolsa Escola, um programa mais focado, e o Fundef, essa proporção tinha desabado para 3,1%, uma queda média anual de 15%. Em 2003, já na vigência do Bolsa Família, havia 2,8% de crianças da mesma faixa etária sem estudar; essa proporção subiu para 2,9% em 2004 e, em 2005, caiu ligeiramente para 2,7%. Isso resulta numa queda média anual de apenas 2%, um nada. Fica claro, assim, que o programa tem sido pouco eficaz para alcançar o objetivo de pôr todas as crianças na escola: 737 mil continuam fora das salas de aula. A coisa fica ainda mais trágica quando analisamos o percentual de crianças em idade escolar que estão trabalhando.

Em 1995, 11,2% das crianças entre 5 e 14 anos trabalhavam. Em 2002, este número tinha caído para 6,5%, uma queda de quase cinco pontos percentuais, uma redução de 58%. Em 2003, o percentual de crianças trabalhando naquela faixa etária era de 5,8% e aumentou para 6,3% em 2005. Onde está o efeito do Bolsa Família?

A imensa maioria das crianças daquela faixa etária trabalhava na agricultura e para consumo próprio, o que fez muitos analistas do IBGE atribuírem o aumento do trabalho infantil à crise no campo, causada pela queda no preço das commodities e pelo câmbio desvalorizado. Alguns jornais chegaram a fazer reportagens no Rio Grande do Sul para ilustrar o problema. Mas uma análise regional dos dados mostra que essa justificativa não se sustenta. Em todo o Brasil, houve, de 2004 para 2005, um aumento de 10,28% de crianças de 5 a 14 anos trabalhando, sendo que o número de crianças em atividades agrícolas cresceu 10,35% contra 10,18% em outras atividades. Em números absolutos, 202 mil crianças passaram a trabalhar, sendo que 124 mil delas no campo, seguindo o padrão histórico. Mas como se deu o fenômeno nos celeiros brasileiros, as regiões Sul e Centro-Oeste?

No Sul, houve um decréscimo no número geral de crianças trabalhando e um pequeno aumento de 2,1% das crianças trabalhando no campo. Mas esse pequeno aumento corresponde a apenas 5 mil crianças, ou seja, apenas 2,5% do total. No Centro-Oeste, houve um decréscimo de 3,7% de crianças trabalhando no campo e de 16,8% de crianças trabalhando em outras atividades. No Norte, a redução de crianças no trabalho foi ainda maior, 22,6%, contra um aumento de trabalho infantil em outras atividades da ordem de 50,9%. Onde o trabalho infantil no campo cresceu mais foi no Sudeste, 38,9%, o que corresponde a 43 mil crianças, e no Nordeste, onde o índice cresceu para 18,9%, totalizando 118 mil crianças, cerca de 58% de todo o aumento do trabalho infantil no Brasil inteiro. Paradoxalmente, é no Nordeste e no Sudeste que o Bolsa Família se expandiu mais.

A crise no setor agrícola, portanto, cujo foco foi o Sul e o Centro-Oeste, não pode ser responsabilizada pelo aumento do trabalho infantil. A meu ver, uma das hipóteses que deve ser levada em conta prioritariamente é a pouca capacidade que o Bolsa Família tem de controlar as condicionalidades da educação. O governo se orgulha de que cerca de 65% das crianças têm o seu controle escolar monitorado, mas, depois de quatro anos de governo, essa proporção é muito baixa. E, na verdade, o controle é falho — o tal cartão eletrônico que acompanharia a vida escolar das crianças nunca passou da fase de projeto. Hoje, é ainda a professora que deve avisar a secretaria municipal de educação que o aluno não vai à escola, e poucas têm coragem de fazê-lo, sabendo que será a responsável por tirar um benefício de uma família. Sem controle eficaz, as famílias podem estar recebendo o benefício e, mesmo assim, usando a mão-de-obra infantil para ajudar na produção doméstica. Atualmente, uma família não pode receber ao mesmo tempo o Bolsa Família e o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil). Como o primeiro paga um benefício máximo de R$ 95 e o segundo, R$ 75, as famílias optam pelo Bolsa Família, que não faz as mesmas exigências do Peti. Este exige que, depois da escola, a criança se dedique a atividades extracurriculares.

Esses números mostram que há algo de muito errado. Um país que tem um Bolsa Família que atende à multidão de 11,1 milhões de famílias, os números de crianças fora da escola e trabalhando simplesmente não podem ser os que a Pnad mostra. O Bolsa Família tem de ser repensado em tamanho, em propósitos e em controles. Só assim ele deixará de ser simplesmente dinheiro na mão das famílias para ser um indutor mais eficaz da educação no Brasil.