Autor: Ali Kamel

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"Bolsa-Família, sem escola", O Globo, 07/09/2004

Mesmo os críticos de programas assistencialistas, como o Bolsa-Famí- lia, ficam confortáveis quando sabem que a contrapartida é a obrigatoriedade de manter os filhos na escola: o sujeito cuja renda familiar per capita é inferior a meio salário mínimo recebe até R$ 95, dependendo do número de filhos, desde que os faça freqüentar as aulas. Pois se prepare para a má notícia: não há contrapartida alguma, porque não há controle.

Em 2002, apenas 13% das escolas informavam à Caixa Econômica a freqüência dos alunos. Hoje, o governo não divulga os números, mas tive acesso à informação de que o índice é ainda menor, talvez zero. E sabe por que não há controle? Cabe às professoras preencher um formulário e enviá-lo à Caixa, e a imensa maioria se recusa a fazê-lo, porque ninguém quer a pecha de dedo-duro.

Fomos realmente ingênuos de acreditar que num país como o Brasil um controle como este poderia existir: são 169 mil escolas de ensino fundamental, quase nenhuma com computador. Uma vez identificada como pobre e faminta, a família é inscrita num cadastro único, recebe pelo correio um cartão magnético da Caixa e começa a retirar o dinheiro. O governo pretende atender, até o ano que vem, a oito milhões de famílias. Considerando, por baixo, duas crianças por família, faça as contas de quantas cartas a Caixa deveria conferir todo mês, manualmente, para manter ou excluir o benefício, se a professora se dispusesse a enviá-las. Trabalho insano. Portanto, esqueçamos essa coisa de que o Bolsa-Família mantém o aluno na escola. É mentira.

Mas muitos devem estar pensando: pelo menos, o pobre faminto recebe uma ajuda mensal para viver melhor. Não é verdade. Como já disse aqui, o cadastro é feito pelas prefeituras, do jeito que elas querem. Os prefeitos cadastram a sua base eleitoral ou os pobres mais hábeis, aqueles capazes de conhecer o caminho das pedras do cadastramento. Os cidadãos abaixo da linha da pobreza, alvo do programa, têm ficado de fora. O perfil socioeconômico do cadastro prova isso: os beneficiados têm condi- ções de vida bem melhores do que as dos pobres do público-alvo. E mesmo esse público-alvo é necessariamente menor do que os 54 milhões que o programa pretende atingir. Ser pobre é uma coisa; ser famélico, outra coisa. É dinheiro indo parar nas mãos erradas. E num processo sem fim. Quando o programa tiver atingido sua meta final (11,8 milhões de famí- lias), que governante correrá o risco eleitoral de cancelá-lo?

Já vimos as conseqüências de políticas que distribuem benefícios a públicos-alvos errados. No Brasil, 40% do dinheiro pago em aposentadorias vão para os que estão entre os 45 e 60 anos de idade; na Espanha, 45% do dinheiro vão para os que estão com 70 anos. No Brasil, 50% do dinheiro pago em aposentadoria vão parar nos bolsos dos dez por cento mais ricos; na Espanha, ele é mais bem distribuído por todas as faixas de renda. Ou seja, as aposentadorias no Brasil vão para os mais jovens e os mais ricos. Foram necessários dez anos para que a reforma da Previdência impedisse que essa injustiça se perpetuasse. Mas, ainda por um bom tempo, o governo gastará 65% do seu orçamento com previdência, impedindo que se invista mais em educação, saúde e infra-estrutura.

Mas o governo parece não ter aprendido a lição. Anunciou, feliz, mais R$ 5,9 bi nas verbas para o social. Muita gente se regozijou. Eu fiquei estarrecido. No mesmo anúncio, o governo disse que as verbas destinadas a investimento seriam as mesmas de 2004: pouco mais de R$ 11 bilhões. Para o Bolsa-Famí- lia, o aumento foi exponencial. Em 2002, R$ 2,6 bi; em 2003, R$ 3,6 bi; em 2004, 5,3 bi; em 2005, 6,7 bi. De 2002 a 2005, um aumento de 158%! Para se ter uma idéia, o orçamento para educação em 2005 será de R$ 7,6 bi.

Para o Fundef, fundo para o qual todos os estados contribuem e que tem sido visto como um avanço na educa- ção, o governo federal destinou em 2004 R$ 446 milhões. No ano que vem, pretende transformar Fundef em Fundeb, para atender ao ensino básico. Para isso, além dos R$ 446 milhões do Fundef, vai desviar R$ 420 milhões do programa de alfabetização de jovens adultos e, como dinheiro novo, botar apenas mais R$ 470 milhões. Não sei como funcionará o Fundeb, mas 60% das verbas do Fundef devem ser usados em salário e o restante em reformas e construção de escolas.

Faça as contas. O governo vai gastar R$ 6,7 bi com a esmola de R$ 95 do Bolsa-Família, dada a um público provavelmente errado, sem ao menos assegurar que as crianças estarão na escola, e apenas R$ 7,6 bi em educação. Sabe quanto vai gastar com capacitação de professores? R$ 83 milhões. Esmola não transforma nada, não muda o país. Se, em vez disso, aplicasse tudo em ensino pú- blico faria uma revolução, duplicando os recursos da educação, a única coisa que muda a vida de um país, de uma família, de um cidadão, tirando-o da pobreza. Sem esmolas.

Como o governo sabe que não melhorará o ensino básico, propõe medidas absurdas, como reservar vagas nas universidades federais para alunos da rede pública. É como se confessasse: "O ensino público é ruim mesmo e nós não vamos melhorá-lo. Preferimos dar esmolas. Em compensação, você vai entrar na faculdade com mais facilidade." É triste. A universidade não é para ricos nem pobres, é para os mais bem dotados. A missão do governo é garantir ensino de qualidade para que todos, em igualdade de condições, possam disputar uma vaga na universidade. A atual política não melhorará o ensino básico e piorará o ensino superior.

E o Brasil que suporte mais um tranco desses.