"Calma, os americanos sabem o que fazem", O Globo, 29/10/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Calma, os americanos sabem o que fazem", O Globo, 29/10/2004

Dizem que a auto-estima do brasileiro é baixa. Eu discordo. Pelo que tenho lido de conterrâneos sobre a eleição americana, nossa auto-estima é altíssima. Nossa urna eletrônica é uma beleza; lá, em muitos estados, o voto é ainda em cédulas. Aqui, os votos são contados em horas; lá, a apuração se arrasta por dias. Nossa lei eleitoral é única; lá, cada estado tem a sua. Nosso país sai unido pelas urnas; lá, a nação está rachada ao meio. Aqui a eleição é por voto popular; lá, ela se dá através de um anacrônico colégio eleitoral. Êta nóis.

Tudo isso seria sinal de decadência. Na análise do Colégio Eleitoral, muitos disseram que os americanos só pensam em reformá-lo. Os estados do Maine e de Nebraska já teriam saí- do na frente e modificado a legislação, para tornar proporcional a eleição dos delegados. Enquanto em todos os outros estados o partido vencedor leva todos os delegados, não importando se a eleição foi de 51% a 49%, em Nebraska e no Maine a coisa se daria proporcionalmente. Mas não é isso.

O objetivo desses dois estados não é relativizar o espírito que deu origem ao Colégio Eleitoral, mas o de reforçá- lo. Por exemplo: o Maine tem direito a quatro delegados: dois, como todos os outros (como no Senado), e dois por ter dois deputados. O partido que tiver a maioria dos votos no estado leva dois delegados. Os outros dois serão escolhidos, como os deputados, um em cada distrito. Isso nada tem a ver com proporcionalidade; tem a ver com o respeito às subdivisões do estado. É, na verdade, uma radicaliza- ção do Colégio Eleitoral, pois pretende representar, de um lado, o estado, e, de outro, a vontade de seus distritos. Implantado no Maine em 1972 e em Nebraska em 1996, esse sistema nunca deu origem a delegados de partidos diferentes: o partido majoritário no estado foi também majoritário nos distritos. Bush ganhou os cinco delegados de Nebraska em 2000 e Al Gore ganhou os quatro do Maine.

No país, Bush teve 47,9% dos votos populares contra 48,4% de Al Gore, uma diferença de 537 mil votos a favor do democrata, mas Bush ficou com 271 votos no Colégio Eleitoral contra 266 de Al Gore. O sistema do Maine e de Nebraska não tem o efeito de minorar essa disparidade, e pode até piorá- la. Em 2000, o candidato Bush teve, no Maine, 44% dos votos e Al Gore, 49%, e o democrata venceu também nos dois distritos. Al Gore levou, portanto, os quatro delegados. Mas Bush ficou muito próximo de Al Gore no distrito mais rural. Se tivesse vencido naquele distrito, teria ficado com um dos delegados, embora Al Gore mantivesse a dianteira no estado. O resultado é que Bush continuaria perdendo no país todo por 500 mil votos, mas teria tido ainda mais um voto no Colégio Eleitoral.

Estudos foram feitos para ver o que aconteceria com o Colégio Eleitoral se o sistema do Maine e de Nebraska fosse adotado em todo o país. O "USToday" chegou à conclusão de que o resultado não se alteraria: 271 para Bush e 266 para Al Gore. Mas outros estudiosos, levando em conta outros métodos, chegaram a conclusões diferentes. Num caso, Bush teria 277 votos contra 255 e, noutro, 283 contra 253. O Colégio Eleitoral ficaria ainda mais divorciado do voto popular. Mas não do que aconteceu nos condados: Bush venceu em 2.400 e Al Gore em 600, os mais populosos.

A mudança mais radical é a que estará sendo votada no Colorado: a ado- ção, de fato, do voto proporcional. Mas ninguém se entusiasma com a idéia, porque o estado passaria a ter pouco peso. O Colorado tem nove delegados. Os dois partidos fazem um esforço danado para levá-los. Mas se o voto passar a ser proporcional, o estado perderá importância. Em 2000, Bush teve 51% dos votos, e levou todos; se o sistema fosse proporcional, teria levado cinco e Al Gore, quatro. O estado teria perdido atratividade para ambos os partidos. Talvez isso explique por que apenas 35% da população do Colorado apóiem a idéia.

Porque querem continuar a ser os Estados Unidos da América, cada estado tem autonomia para escolher suas máquinas de votação, seu processo eleitoral, e a eleição através de um Colégio Eleitoral visa a garantir isso (a Suprema Corte limita o poder do Congresso de legislar sobre o Colégio). O federalismo é a base da democracia americana. Analistas se preocupam também com a tal "América dividida". Acalmem-se. Em tempos de eleição, num sistema na prática bipartidário, a nação sempre está dividida. Em toda a História, 15 presidentes governaram sem ter alcançado 50% dos votos populares, entre eles Wilson (nos dois mandatos), Truman, Kennedy, Nixon, Clinton (nos dois mandatos) e Bush. As disputas costumam ser apertadas, algumas, apertadíssimas: Kennedy 49,7%, Nixon 49,6%; Nixon 43,02%, Humphrey 42,6%; Carter 50%, Ford 48%. Depois de cada eleição, o país se une. Agora, não vai ser diferente.