"Candidato não se inventa; revela-se", O Globo, 09/01/2001 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Candidato não se inventa; revela-se", O Globo, 09/01/2001

Cruz

"Candidato não se inventa; revela-se", O Globo, 09/01/2001

A campanha para 2002 já está na rua, e os analistas prevêem: o candidato do Governo à Presidência será Tasso Jereissati ou José Serra, ambos com largo trânsito partidário e com obra social a mostrar. Pedro Malan, ministro da Fazenda, seria carta fora do baralho, por não ser político e por sofrer de um mal que alguns rotulam de "insensibilidade social". Tasso Jereissati é sem dúvida um político vitorioso. É reconhecido como honesto e competente. Quando terminar o mandato, seu grupo político terá governado o Ceará por 16 anos (12 com Tasso e quatro com seu afilhado Ciro Gomes). Nesse período, mudou a face do estado: duplicou o seu PIB em dez anos, a taxa de mortalidade infantil hoje é apenas um terço do que já foi e as redes de água e eletricidade cresceram duas vezes. Mas será isso o suficiente para elegê-lo?

Fico imaginando o horário eleitoral gratuito na TV, com o candidato da oposição mostrando as mazelas de um estado que, apesar dos avan- ços, tem ainda problemas gigantescos. Está certo, o PIB duplicou, mas a renda média do cearense continua sendo a terceira pior do país; as redes de água e de eletricidade também duplicaram, mas quatro em cada dez domicílios não têm abastecimento de água (é o terceiro pior desempenho do Brasil) e a rede de energia elétrica é a quinta menor; a mortalidade infantil caiu, mas ainda é a sexta mais alta do país; o índice de analfabetismo infantil é o quarto mais alto da federação; o índice de desenvolvimento humano mantém-se abaixo da média do Nordeste: o Ceará ocupa a 22a - posi- ção. Antevejo as câmaras focalizando as populações miseráveis daquele estado, sem água, sem luz, com fome, e uma voz em off dizendo: "Quem governou o Ceará por 16 anos e o deixou assim pode governar o Brasil por quatro?" Será com certeza manobra política, manipula- ção de dados que minimiza os avanços para cobrar milagres. Mas com um efeito eleitoral danoso, difícil de ser neutralizado, e que atingiria também, e pelos mesmos motivos, Ciro Gomes.

Talvez isso explique por que Lula tem dito que seu maior adversário seria Tasso. Não é medo; é torcida.

José Serra também é um administrador de sucesso. Seu desempenho à frente do Ministé- rio da Saúde é reconhecido até por adversá- rios. Cientistas de institutos de pesquisas e mé- dicos de hospitais vinculados à pasta costumam dizer que ele deixará o Governo como o melhor ministro da Saúde em 50 anos. Serra fechou os ralos que faziam o Estado perder rios de dinheiro com fraudes, promoveu campanhas nacionais de prevenção contra o câncer de útero, ampliou em 100% o programa de agentes comunitários de saúde, instituiu a vacinação de idosos contra a gripe, aumentou em 30% o repasse de verbas aos estados. Além disso, conseguiu fazer o Congresso aprovar projetos que mudaram o perfil da saúde pública no país, como a lei contra a falsificação de remé- dios; a que facilita a fabricação de genéricos, derrubando o preço dos remédios; a que regulamenta os planos de saúde, favorecendo os consumidores; a que cria a Agência Nacional de Saúde; e, recentemente, a lei contra a propaganda do fumo e a que possibilita a redução de impostos sobre medicamentos. É um trabalho cujos méritos são óbvios.

Mas ninguém faz milagres. Apesar dos avan- ços, será sempre muito fácil flagrar cenas que mostrem dificuldades terríveis ainda não superadas. Volto a antever o horário eleitoral gratuito e a câmara apontando para pacientes sem hemodiálise em algum lugar do Nordeste; algum paciente renal há anos à espera de transplante no Sul; pacientes pobres a madrugada inteira em filas em hospitais do Rio; posto mé- dico sem remédios em São Paulo; mães chorando pela perda de filhos; pais indignados porque o filho morreu por falta de atendimento médico. E a voz da oposição dizendo: "E quem não conseguiu resolver estes problemas vai conseguir governar o Brasil?" Novamente malandragem política, mas com efeitos eleitorais danosos.

Pedro Malan é também um ministro bem-sucedido. Ao fim deste Governo terá estado à frente do Ministério da Fazenda por oito anos. Se a situação atual se mantiver, terá indicadores de peso a apresentar: menor inflação das últimas décadas, contas públicas em ordem, crescimento. Poderá se apresentar como um servidor público sem passagens constrangedoras pela iniciativa privada, tendo atravessado todo o Governo e o cipoal de CPIs sem sofrer nenhum arranhão: nem os opositores lhe negam o adjetivo de honesto. E, mais importante, terá ajudado a implantar todas as etapas do Plano Real e a superar os obstáculos que ele enfrentou: a crise do Mé- xico, em 1995; a crise da Ásia, em 1997; a crise da Rússia, em 1998; a desvalorização cambial, em 1999. Um mote para o locutor oficial: "O homem que garantiu o real até aqui, é o homem que pode garantir a sua continuidade."

Não, não esqueci a voz do locutor da oposi- ção. "Malan é o homem do Proer, que emprestou bilhões de dólares aos banqueiros." Mas nesse caso bastará a Malan ser didático. Poderá mostrar que não emprestou dinheiro a banqueiros; tomou deles bancos, sem levar em conta afinidades e filiações. Acabou com o Nacional, da família das netas do presidente; liquidou o Bamerindus, cujo dono era ninguém menos que o tesoureiro da campanha de FH (e, depois, seu ministro da Agricultura); e pôs fim ao Econômico, do amigo do poderoso ACM. Poderá mostrar que o que os bilhões do Proer fizeram foi garantir o dinheiro dos depositantes desses bancos, que puderam sacá-lo sem problemas. Se não houvesse Proer, poderá dizer, esses depósitos virariam pó, provocando uma quebradeira de bancos, o que prejudicaria ainda mais brasileiros. E poderá concluir: "Para mim, isso é política social."

Fernando Henrique foi eleito duas vezes, com mais de 50% dos votos, em primeiro turno, graças ao Plano Real. Aos olhos do eleitorado, é a sua principal obra. Não foi eleito porque é popular, porque é carismático, porque é amado, porque é populista; foi eleito por ter um discurso racional, de defesa do Real, e por convencer o eleitorado de que era o homem certo para dar continuidade a ele. A fórmula deu certo em 1994, num momento de euforia, e em 1998, num momento de profunda inquietação. Por que não daria certo novamente em 2002? É um silogismo: se o Governo também considera o Plano Real a sua principal obra, se o Plano Real ainda é estimado (e as pesquisas dizem que sim), o candidato mais viável será o que melhor o encarnar.

Para o bem ou para o mal, cada ato do atual Governo tem um dedo de Malan. A ele, sem parecer falso, como co-autor, podem ser atribuídos os méritos que esse Governo julga ter. E os males também. O desemprego estará em queda mas ainda alto, a renda do trabalho estará maior do que hoje, mas menor do que já foi, a proporção de pobres entre os brasileiros ainda será grande e as políticas sociais ainda estarão aquém do desejável. Situação, no entanto, parecida com a de 98, quando o eleitorado ainda assim entendeu que os avanços obtidos eram maiores do que aqueles obstáculos.

Esta é a chave que poderia viabilizar Malan: o eleitorado pode mais facilmente reconhecer nele a essência do Governo FH, que estará sendo julgado. E, se a considerar positiva, elegê-lo p re s i d e n t e .

Um candidato não se inventa; revela-se. Diferentemente do que muitos dizem, Malan não é a melhor opção do Governo para a hipótese de o país estar economicamente numa situação maravilhosa em 2002. Nesse caso, o Governo elegeria até um poste. Malan é o candidato mais viável para uma situação como a que estamos vivendo: avanços graduais, mas sem milagres.