"A coisa errada, na hora errada, no lugar errado", O Globo, 15/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A coisa errada, na hora errada, no lugar errado", O Globo, 15/04/2003

Síria e Iraque foram inimigos durante anos, muitos anos. Em meados da década de 50, um partido socialista leigo chegou ao poder na Síria. Era o Baath, que em árabe significa "renascimento" e que tinha a proposta de unir todos os árabes numa só nação. Um comitê central pan-arabista chefiava as se- ções nacionais do partido na Síria, no Iraque, na Jordânia e no Líbano. Em 1958, no auge da pregação pan-arabista de Gamal Abdel Nasser, no Egito, a Sí- ria, sob a liderança do Baath, abriu mão de sua soberania e aceitou formar com os egípcios a República Árabe Unida (RAU). Três anos depois, a realidade substituiu os sonhos, e os sírios começaram a notar que ocupavam um lugar de segunda classe, como subordinados, simples membros da província norte da recém fundada RAU. O resultado foi um novo golpe de Estado na Síria, que devolveu ao país a sua independência.

Em 1963, porém, o Baath sí- rio voltou ao poder e, no mesmo ano, o seu congênere do Iraque assumiu o governo através de um golpe de Estado. Em pouco tempo, os dois partidos começaram a fazer gestões para que uma nova República Árabe Unida fosse criada, dessa vez uma união entre Síria, Iraque e Egito. Mas Nasser quis impor as suas pró- prias condições e a união não foi para frente. E, logo, as rela- ções entre Síria e Iraque estariam também estremecidas. Porque a existência de um comitê central pan-arabista do Baath, supranacional, criava uma incômoda situação: nãosírios intrometendo-se nos assuntos sírios e não-iraquianos fazendo o mesmo em relação ao Iraque. A solução seria a raiz dos desentendimentos futuros. A Síria decidiu criar seu próprio comitê central supranacional em oposição ao que antes já existia. E Síria e Iraque passaram a disputar quem tinha mais legitimidade para unir os árabes do mundo inteiro. Os árabes continuaram desunidos, e Iraque e Síria se tornaram cada vez mais rivais.

Saddam Hussein, mesmo antes de ser o presidente, sempre se opôs à união com a Síria, e mandou para a morte muitos iraquianos acusados de serem agentes sírios. Em 1970, Hafez Assad deu um golpe dentro do próprio Baath e conseguiu unir o país em torno de si. Os dois países seguiram caminhos opostos. Em 1980, a Síria apoiou o Irã contra o Iraque, na guerra de oito anos que se seguiria. E, em 1991, a Síria fez parte da coalizão (com homens e armas) que expulsou o Iraque do Kuwait. Em 1980, os dois países romperam relações e fecharam as fronteiras.

Em 1997, após quase 20 anos de hostilidades, as fronteiras entre os dois países foram parcialmente reabertas, mas somente depois da morte de Hafez Assad as relações entre os dois países se tornaram amistosas. Hafez foi substituído por seu filho Bashar, então um jovem oftalmologista de 32 anos (o verdadeiro herdeiro, o filho mais velho de Hafez, morreu num desastre de automóvel). Foi Bashar que acelerou, a partir do ano 2000, os entendimentos com o governo de Saddam. A necessidade de visto diplomático foi suspensa, o Iraque abriu uma representa- ção diplomática em Damasco e alguns acordos relativos a transporte, comércio e comunicação foram assinados, embora não implementados.

À medida que a reaproximação era anunciada, os analistas tentavam entender a estratégia da Síria. Uns acreditavam que Bashar achava provável que as sanções contra o Iraque seriam levantadas em breve; nesse contexto, a reaproximação seria uma tentativa de assegurar no futuro um lugar privilegiado no comércio com um país potencialmente rico. Outros acreditavam que o objetivo era militar. A Síria tem disputas territoriais com a Turquia desde que a França, na década de 30, cedeu parte do seu território para aquele país. Nos últimos anos, a situação tem estado tensa, porque a Turquia, onde nasce o Eufrates, ameaça com a constru- ção de novas represas, o que deixaria tanto Iraque quanto Síria ainda mais vulneráveis do que já são em termos de abastecimento de água. Para complicar a situação, a Turquia estreitou laços com Israel nos anos 90. Para fazer frente a Israel, com quem ainda está em "estado de guerra", e a Turquia, Bashar teria visto na força militar do Iraque uma possível ajuda. A ser verdadeira essa hipótese, e diante do fiasco da máquina de guerra iraquiana, a reaproximação teria sido um tremendo erro de cálculo.

Considerando que os EUA há anos acusam a Síria de ter armas químicas e de proteger os terroristas dos grupos Hamas, Jihad Islâmica e Hezbollah, o reatamento com o Iraque foi uma manobra de altíssimo risco. Num relatório semestral que a CIA faz ao Congresso americano sobre a aquisição de tecnologias relacionadas a armas de destrui- ção em massa, está dito: "A Síria buscou no exterior expertise em armas químicas, mantém estoque de gás sarin e parece estar tentando desenvolver formas ainda mais letais de atingir o sistema nervoso. É altamente prová- vel que a Síria esteja desenvolvendo capacidade para fabricar armas biológicas altamente destrutivas". O relató- rio é de junho de 2001.

Ano passado, a Síria deu o seu voto a favor dos EUA no Conselho de Segurança da ONU, ajudando assim a aprovar por unanimidade a Resolução 1441, que obrigava o Iraque a se desarmar, "sob pena de enfrentar graves conseqüências". Parecia que a Síria tinha percebido para que lado pendia a balança. Mas a julgar pela posição enfaticamente pró-Iraque imediatamente antes e durante a guerra, a Síria mostrou ao mundo que, depois de tantos anos de hostilidade, a reaproximação com o Iraque foi a coisa errada, na hora errada, no lugar errado. E, pelo que se viu no Iraque, já se sabe quem se arrisca a pagar a conta: o povo.

Amanhã, semelhanças e diferenças entre Iraque e Síria.