"Cotas", O Globo, 27/05/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Cotas", O Globo, 27/05/2008

A Uerj, a primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas raciais, divulgou um estudo bastante revelador. No vestibular do ano passado, foram oferecidas 1.048 vagas para negros, mas apenas 673 estudantes se inscreveram. Desses, 439 passaram. No ano anterior, o mesmo fenômeno já tinha acontecido. Foram oferecidas 1.031 vagas para negros, mas apenas 753 se inscreveram (as aprovações foram de apenas 432 alunos). Antes, havia mais candidatos inscritos do que vagas, mas o cená- rio mudou completamente nos últimos dois anos. A Uerj anunciou, então, um amplo estudo, a ser concluí- do até o fim deste ano, para descobrir as causas.

Eu pergunto: precisa?

Para mim, esses dados são eloqüentes e provam, de maneira cabal, que, se os negros e os pardos não estão nas universidades na mesma proporção que ocupam na população geral, o motivo não é o racismo. Se, mesmo com 20% de vagas reservadas, não há inscritos suficientes, isso é um sinal claro de que a política de cotas é um instrumento ineficiente para abrir as portas do ensino superior. Se a Uerj decidisse ampliar a reserva de vagas para, digamos, 40%, o único resultado seria uma ociosidade ainda maior. O que esses números dizem de uma maneira irrefutável é que o ensino médio não forma alunos negros em número suficiente, o que impede até mesmo uma simples inscrição no vestibular (o certificado de conclusão do ensino médio é requisito para entrar na universidade). Antes, havia mais inscritos do que vagas, porque havia um estoque de alunos formados em anos anteriores, estoque esse que, com o tempo, se esgotou. Hoje, faltam formandos oriundos do ensino médio. Como para freqüentar o ensino médio e o ensino fundamental não há nenhum pré-requisito, não se pode dizer que haja neles um gargalo que atinja especificamente os negros. Neste país, negro, pardo, branco ou amarelo, todos têm livre acesso às escolas pú- blicas. Em outras palavras, não é o racismo que impede os negros de se formarem no ensino médio e, formados, de passarem no vestibular, mesmo tendo a vida facilitada por cotas.

O que os impede de estar bem preparados é a pobreza. São os pobres, de todas as cores, que freqüentam as nossas escolas públicas, a maioria esmagadora delas de péssima qualidade. Os mesmos números da Uerj comprovam o que estou dizendo. A universidade também destina cotas para estudantes da rede pública: no ano passado, foram oferecidas 1.048 vagas, e os inscritos foram 1.292 alunos. Mas apenas 787 passaram, mesmo com as cotas. No ano anterior, 1.581 alunos da rede pública se inscreveram nas 1.031 vagas oferecidas nas cotas, mas, novamente, apenas 830 alunos conseguiram entrar. Por que há mais alunos inscritos na cota para alunos de escolas públicas? A lei que instituiu as cotas na Uerj, diferentemente de outras leis, não diz que negros são os negros propriamente ditos e os pardos. Fala apenas em negros, e ordena num outro parágrafo que a universidade crie mecanismos para combater fraudes. Num país miscigenado como o nosso, é muito provável que os pardos de vá- rias tonalidades tenham medo de se inscrever como negros e passar o vexame de ou ver a inscrição negada ou, pior, ser punidos como fraudadores. Devem estar optando pela cota mais segura, aquela que está isenta de qualquer tribunal racial, a cota para alunos de escolas públicas. Mas o trágico é que em ambas o índice de reprovação é altíssimo: 35%, na cota para negros, e 39%, na cota para alunos da rede pú- blica. Um sinal óbvio de que o problema reside no péssimo ensino que nossas escolas dão aos seus alunos, os filhos pobres do país. Uma tragédia.

Diante desses números, só há uma conclusão possível: as universidades só estarão coalhadas de alunos de todas as cores quando o nosso ensino público for de qualidade. Hoje, segundo dados oficiais, 75% das escolas de ensino fundamental no Brasil não têm sequer biblioteca, 91% não têm laboratório de ciências, 80% não têm sala de vídeo, 62% não têm computadores, 83% não têm laboratório de informá- tica e 80% não têm acesso à internet. Não há uma só reportagem feita em uma escola pública típica, seja de cidade grande, pequena ou média, de área urbana ou de interior, em que o quadro não se repita: prédios caindo aos pedaços, livros didáticos de baixíssima qualidade, professores mal remunerados e mal preparados. Enquanto esse quadro persistir, os pobres brasileiros continuarão barrados às portas das universidades, mesmo daquelas que tentaram o atalho fácil das cotas. Haverá menos inscritos do que vagas oferecidas, e a reprovação continuará a ser grande.

Não vê quem não quer. E quem não quer ver são os racialistas, aqueles que querem transformar a nossa sociedade miscigenada numa nação racialmente dividida a fórceps entre negros e brancos. Em vez de analisarem os números e admitirem que é a pobreza, muito mais do que o racismo, a responsável pela falta de acesso de negros às universidades, preferem escrever manifestos em que repetem os mesmos falsos argumentos estatísticos de sempre. Desfiam uma série de números mostrando que negros e pardos encontram-se em situação pior, na média, do que os brancos, mas omitem que as estatísticas não permitem deduzir que isso seja fruto de racismo. É fruto da pobreza. O estudo da Uerj é apenas uma prova a mais, dentre muitas. A sanha racialista é de tal ordem que o Ipea chega a divulgar com pompa e orgulho que, este ano, os negros serão maioria entre os brasileiros. Nada contra, se fosse verdade. Não é. O que os dados do IBGE mostram inequivocamente é que o Brasil caminha para ser a maior nação mestiça do mundo. É isto o que temos de comemorar, é a prova mais evidente de que, no Brasil, não existem grupos estanques, todos se misturam.

É a nossa novidade diante do mundo, contra a qual lutam os racialistas.