"O debate de Kerry", O Globo, 05/10/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O debate de Kerry", O Globo, 05/10/2004

Tenho dito que tanto Kerry quanto Bush, se eleitos, farão tudo o que é preciso fazer para combater o novo totalitarismo que ameaça o mundo: o terrorismo islâmico. Portanto, para mim, um ou outro tanto faz. Basta se sentar naquela cadeira para que as coisas caminhem como têm de caminhar. Mas, ao assistir ao debate de quinta-feira, não pude deixar de ficar impressionado com as análises que correram o mundo. Kerry teria ganhado de Bush porque se mostrou mais consistente, mais sofisticado em suas análises, intelectualmente muito superior ao adversário. Kerry pode ser isso tudo, mas, no debate, levado pelo marketing eleitoral, ele foi simplista, reducionista, aquele com a visão mais estreita sobre o grande desafio que o mundo enfrenta. Ao longo de uma hora e meia, repetiu sem parar que o inimigo tinha um nome, Osama bin Laden, e que ca- çá-lo era tudo que o presidente dos EUA precisava fazer.

Diante dessa análise, a de Bush, apesar de seu olhar de esquisitão, seu jeito às vezes meio balbuciante de falar e seu vocabulário restrito, era mais sofisticada e próxima da realidade. Porque imaginar que a guerra contra o terror se limita a pôr atrás das grades Bin Laden (ou a matá-lo) soa tão ridículo como a piada que Kerry tentou fazer com Bush, ao dizer que invadir o Iraque como conseqüência do 11 de Setembro era o mesmo que Roosevelt ter invadido o México para reagir ao bombardeio de Pearl Harbor. Boa piada, mas somente isso. O cowboy ali parecia Kerry, querendo "acertar contas" com o inimigo da América. Papéis trocados?

Prender ou matar Bin Laden terá apenas o efeito de satisfazer o ego americano, mas a ameaça do terror islâmico continuará a mesma. Kerry, eu sei, estava cumprindo o que seus marqueteiros mandaram, mas o perfil de Bin Laden que ele traçou parecia o de um Batman do mal, comandando o terror islâmico mundial de dentro de alguma caverna de Torabora (a insistência dele nesse nome sonoro era até engraçada, apesar de não haver nenhuma prova de que Bin Laden tenha andado por lá). Uma vez liquidado, pronto: os seus comparsas mundo afora poriam as mãos na cabeça e, em fila indiana, se entregariam para a polícia, como num desenho animado.

Dar a entender ao público americano que o fim de Bin Laden é o fim do terrorismo islâmico, ou um passo decisivo, é levá-lo a um "colossal erro de julgamento", para usar uma expressão "marqueteiramente" usada o tempo inteiro por Kerry. Da mesma forma, ele foi contraditório. O candidato repetiu à exaustão que, para agir, não aceitará veto de nenhum organismo internacional ou nação ou conjunto de nações toda vez que a segurança dos EUA estiver em perigo. Ou seja, ele agirá, se preciso, unilateralmente. Mas, no minuto seguinte, ao tentar se diferenciar de Bush, ele disse que, antes de agir, será sempre necessário passar "no teste global", ou seja, é preciso ter o aval do mundo. Ora, como entender as duas coisas?

Em oposição a Kerry, Bush parecia ter uma visão muito mais completa sobre o que acontece no mundo. Se de fato Bush tiver um dia sido o ignorante simplório que dizem que ele é, parece que quatro anos na Casa Branca ensinaram a ele alguma coisa. Porque, de fato, o terrorismo islâmico é um fenômeno mundial, é preciso combatê-lo em múltiplas frentes, e não apenas nas montanhas de Torabora. Os fanáticos do Islã não precisam mais de um líder. Aliás, ter um líder a ser cultuado e seguido é contra a essência do que acreditam: "Só há um líder, e este é Deus." A gênese desse grupo remonta a 1928, com a criação da Irmandade Muçulmana e sua ideologia foi se consolidando com a contribuição de muitos pensadores, como Hasan Al-Banna, Sayyd Qutb e Abdulah Azzem. Para essa gente, os muçulmanos vivem mal porque não cumpriram o que Deus determinou no Alcorão: devem eles próprios viver uma vida de acordo com a verdade revelada e espalhar essa verdade para todo o mundo, literalmente. É a isso que os terroristas se dedicam: impor a sua verdade a todos nós, porque esta é a vontade de Deus. Se, para este fim, usam aviões ou carros-bombas é apenas porque ainda não conseguiram encontrar uma maneira de fazer uso da capacidade nuclear do Ocidente contra o próprio Ocidente. Se conseguirem, farão. Porque não há diferença entre se matar para matar centenas, usando dinamite, ou se matar e matar centenas de milhares com algum artefato nuclear. É apenas questão de oportunidade.

Onde entra o Iraque nessa histó- ria? De duas maneiras. Depois do megaatentado de 11 de setembro, realizado por um grupo que tinha o abrigo apenas de um estado pária como o Afeganistão, os EUA não podiam se dar ao luxo de permitir que o Iraque, muito mais rico e forte, pudesse, um dia, acolher terroristas. O próprio Kerry, antes das primárias, para justificar seu voto a favor da guerra, dizia que o mundo tinha todos os motivos para acreditar que o Iraque pudesse de fato ter armas de destruição em massa: de 91 a 98, a quantidade de armas encontradas pelos inspetores era superior ao que todos tinham imaginado; como o Iraque ficou quatro anos sem inspeção, era legítimo supor que o país tivesse recomposto seu arsenal. De outro lado, tanto Kerry quanto Bush sabem que o grande problema a ser enfrentado é a Arábia Saudita, ninho das justificativas ideológicas dos terroristas. A coroa saudita tem se mostrado reticente, deixando de atuar frontalmente contra os clérigos radicais com medo ela própria de agravar o conflito interno. Enfrentar essa situação é um imperativo, reconhecem os dois candidatos, mas como fazê-lo, se a Arábia responde por boa parte das exportações mundiais de petróleo?

Para Kerry, livrar o mundo dessa dependência é prioridade, mas a receita dele é investir pesadamente em tecnologia para que em dez anos fontes alternativas de energia possam ser descobertas. A questão é: o mundo pode esperar até lá? A invasão do Iraque seria um atalho, triplamente vantajoso: livraria o mundo de Saddam e os EUA, de uma ameaça potencial, levaria um experimento democrático para uma região onde só há déspotas e faria jorrar petróleo para suprir o mercado internacional na eventualidade de um conflito com a Arábia Saudita. Coisas que não se dizem em debates.

Não se discute que o Iraque está num caos. Mas, se eleito, Kerry sabe que terá de tentar estabilizar o país a qualquer preço. E, quando isso acontecer, ele agradecerá a Bush por ter aberto o caminho para o resto do trabalho. Fora de debates, os americanos costumam ter perspectiva histórica.