"A demissão de Judith Miller", O Globo, 15/11/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A demissão de Judith Miller", O Globo, 15/11/2005

O leitor interessado no assunto já tem um veredicto a respeito da repórter Judith Miller, do "New York Times": antiética, incompetente e mau caráter. Pelo que se lê aqui e lá fora, ela publicou inúmeras reportagens atestando que Saddam possuía armas de destruição em massa, e deu, assim, sustentação à principal alegação dos EUA para invadir o país. Muito mais tarde, com a reputação em ruínas, Miller passou 85 dias na cadeia alegando que preferia a prisão a ter de revelar o nome de uma fonte, mas, na verdade, tudo não passou de uma manobra para que ela pudesse ressurgir como heroína. Será fato? O "Times" publicou uma crítica sobre sua cobertura da guerra em maio de 2004, citando 16 reportagens problemáticas, sendo que nove delas anteriores à invasão e, destas, quatro, as mais polêmicas, de autoria de Miller.

Em 20 de dezembro de 2001, Miller publicou a reportagem "Desertor iraquiano relata obras em 20 ou mais esconderijos de armamentos", em que Adnan Saeed diz que trabalhou em reformas de instalações para armas biológicas, químicas e nucleares até um ano antes da entrevista. Miller é honesta sobre como conseguiu a entrevista e mostra as conseqüências de entrevistas desse tipo? Sim: "A entrevista com Saeed foi conseguida por meio do Congresso Nacional Iraquiano, o principal grupo de oposição do país, que procura derrubar Hussein. Caso comprovadas, as alegações de Saeed forneceriam munição para as autoridades do governo Bush, que vêm usando o argumento de que Hussein deveria ser banido do poder em parte devido à sua recusa de parar de fabricar armas de destruição em massa, apesar de suas promessas nesse sentido." A matéria faz alguma ressalva a respeito das informações do desertor? Sim: "As autoridades de inteligência americanas sempre tiveram dúvidas sobre o que dizem esses desertores. Embora alguns tenham fornecido informações 'valiosas' sobre essas atividades, dizem elas, muitos exageram seus feitos e o que realmente sabem para conseguir asilo nos EUA e em outros países." Miller faz alguma advertência sobre o uso das informações que divulga? Sim: "É preciso agir com especial cautela, declara um especialista em armamentos, à luz do atual debate interno entre as autoridades do governo Bush sobre a conveniência ou não de ampliar a guerra contra o terrorismo para o Iraque."

Na reportagem "EUA dizem que Hussein intensifica esforços em busca de peças para bomba atômica", publicada em oito de setembro de 2002, Miller dá uma informação: o governo Bush teria descoberto que Saddam comprou tubos de alumínio indispensáveis para a feitura da bomba atômica. Mas, mais uma vez, Miller destaca que a informa- ção serve aos propósitos dos que eram a favor da invasão? Sim: "Embora não haja qualquer indício de que o Iraque esteja prestes a lançar sua bomba nuclear, sua procura por armamentos nucleares vem sendo citada por membros linha-dura do governo Bush para sustentar o argumento de que os Estados Unidos têm que agir já, antes que Hussein adquira armas nucleares." Miller dá espaço para os céticos em relação ao poderio nuclear iraquiano? Sim: "O Iraque, dizem os críticos, ainda é altamente dependente de ajuda externa a fim de levar avante seu programa nuclear. Washington, no parecer dos crí- ticos, tem tempo de aplicar a diplomacia e deveria buscar o apoio das Na- ções Unidas para obrigar o Sr. Hussein a aceitar de volta os inspetores. Há unanimidade entre os críticos ao insistirem que informações da inteligência sugerem que não há motivo para uma ação militar apressada."

Em 13 de setembro de 2002, Miller publicou a matéria "Casa Branca revela lista de etapas para que o Iraque construa armamentos proibidos". Logo no início, ela enfatiza que o documento "procura reforçar os argumentos para ação militar contra o Iraque". E, a seguir, dá espaço aos que desqualificam a iniciativa: "Alguns parlamentares veteranos do Partido Democrata reclamaram que a CIA ainda não entregou nenhum relatório atualizado que documente os programas militares do Iraque. Afirmam também que algumas informações de inteligência fornecidas pelo governo sobre as atividades armamentistas do Iraque são imprecisas e desatualizadas."

Antes da invasão, Miller ainda publicou em 24 de janeiro de 2003 a reportagem "Desertores reforçam argumentos dos EUA contra o Iraque, afirmam autoridades". Nela, Miller diz que o governo Bush já tem uma estratégia para contornar o fato de que os inspetores nada encontraram no Iraque até ali: produzir e divulgar um relatório baseado em relatos de desertores. Miller faz alguma ressalva quanto ao valor do documento? Sim: "Entretanto, Washington está muito dividida quanto ao valor das informações provenientes de desertores. A Agência de Inteligência de Defesa do Pentágono até agora foi a mais receptiva, afirmando que os desertores são essenciais para se penetrar nas prá- ticas de engodo comuns no Iraque. A CIA por diversas vezes descarta o que dizem os desertores e questiona sua credibilidade, segundo autoridades do governo." Ora, tal matéria foi exatamente um furo, pois foi isso o que aconteceu: Bush desprezou o relato dos inspetores e confiou no relato dos desertores. O resto é história.

Independentemente do comportamento pessoal de Miller, na análise das matérias dela nada encontro que as desabone. Ela certamente estava convencida de que havia armas, mas deu as informações que existiam no momento e as contextualizou, abrindo espaço a quem as contradizia. Isso me leva a discutir uma noção de jornalismo que volta e meia vem à tona: o bom jornalismo teria o condão de chegar à realidade de uma maneira inequívoca. Se não existem armas de destruição em massa no Iraque, o bom jornalismo jamais produzirá uma reportagem sugerindo o contrário. Seria como se jornalistas fossem pitonisas. Nada mais falso. A verdade é sempre construída num processo longo de idas e vindas, numa marcha contí- nua de reportagens, umas aperfeiçoando as outras, às vezes umas desmentindo as outras. Depois da invasão, com a certeza de que não havia armas, Miller passou a ser execrada. O maior fracasso do "Times", até aqui, porém, não foi publicar as matérias de Miller, mas não ter avançado no diagnóstico: Bush mentiu, os serviços secretos foram enganados, foi incompetência ou tudo junto? Nisso, Miller não teve culpa: o pró- prio jornal anunciou que a proibira de continuar trabalhando no tema. Antes da proibição, Miller procurou I. Lewis Libby, chefe de gabinete do vice-presidente, numa tentativa, segundo ela, de entender o fracasso dos serviços secretos. Em uma das conversas, surgiu a informação de que a mulher de um detrator de Bush trabalhava na CIA, informação que Miller jamais usou. Mas que foi publicada por um jornalista conservador, dando origem ao inquérito para apurar quem do governo revelara a identidade de um agente secreto, um crime federal. Miller se manteve calada, para proteger a sua fonte. Foi presa. No fim, ao ser liberada oficialmente por sua fonte, consentiu em depor.

Nos editoriais, o "New York Times" a apoiou, mas, no fim, os colegas de redação, na impossibilidade de dar um xeque-mate em Bush, provando que ele mentiu deliberadamente, deram um xeque-mate na colega.