"Dúvidas que informam", O Globo, 10/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Dúvidas que informam", O Globo, 10/04/2003

Nós jornalistas temos certeza de que devemos vender certezas, na suposição de que o público, atordoado por um mundo confuso e caótico, não quer dúvidas, que já tem de sobra; quer o conforto das explicações cabais, um mundo organizado. A tarefa que nos impomos é realizável quando se trata de uma reunião ministerial, por exemplo. Uma boa apuração, feita com isen- ção e ouvindo o maior número de fontes, pode chegar a um resultado bastante próximo da verdade. O mesmo pode se dar na investigação das causas de uma catástrofe ambiental. Ou de um crime. Ou de uma ação desastrada da polícia. À medida que os eventos ganham em dimensão e complexidade, porém, é mais difícil que se sirva ao público um prato feito e arrumado. E, nos grandes eventos, a tendência é organizar os fatos fazendo-se previsões como se o dom da adivinhação existisse. Como não existe, a chances de erro são grandes. E, no entanto, é isso o que temos visto nessa guerra do Iraque (exceções sempre existem): na maior parte das vezes, interpretações equivocadas servidas como se fossem verdades absolutas. Fantasias no lugar de fatos.

O mesmo fenômeno já tinha acontecido na guerra contra o Afeganistão. A mesma imprensa que produziu o fenômeno já se esqueceu dele, mas vale a pena relembrar. Era consenso entre os analistas que os EUA estavam se metendo numa confusão sem tamanho, de onde nada de bom poderia resultar. Diziam que os afegãos eram guerreiros ferozes e que, ao longo de sua história, tinham derrotado dois grandes impérios. Em 1842, uma tropa britânica de 17 mil homens foi dizimada, dela restando apenas um homem para contar o massacre: o Dr. Brydon, cirurgião do exército inglês. Nos anos 80, os poderosos soviéticos tinham também levado uma surra dos bravos afegãos, que, montados em seus cavalos, destruíram os tanques soviéticos (e tome a citar a filmografia de Rambo para lembrar que, naquele tempo, os EUA apoiaram os afegãos). Com base nesses dados históricos a previsão era que o conflito com os americanos seria longo, penoso, com a perda de muitas vidas. Lembro-me até de um analista de guerra dizendo que o Afeganistão tinha já mostrado aos britânicos e soviéticos que o país costuma ser uma geleira no inverno e um inferno no verão.

A guerra começou e todas as análises indicavam que a guerra seria longa. Para isso, contribuíam as entrevistas diárias do embaixador do Talibã no Paquistão (sempre acompanhado daquele companheiro que tinha um gancho no lugar da mão e um tapa-olho), que desmentiam os avanços e vitórias da aliança anglo-americana. De repente, menos de dois meses depois, o embaixador fugiu do Paquistão num jipe branco e Cabul caiu. Está certo que nunca mais nem Osama Bin Laden nem o mulá Omar foram vistos, mas eu não li nenhum artigo de autocrítica, em nenhum jornal, reconhecendo que os prognósticos estavam errados.

Agora, a história voltou a se repetir. O noticiário seguiu um ritmo esquizofrênico, mas sempre cheio de certezas. Como tudo aconteceu há pouco tempo, os leitores hão de se recordar. O primeiro movimento da imprensa dizia basicamente três coisas: a guerra seria curtíssima, em três dias tudo estaria resolvido; o Iraque é um país artificial, dividido em três etnias (aquela coisa de curdos ao norte, sunitas no centro e xiitas ao sul), e que, portanto, se fragmentaria sem o pulso forte de Saddam; os xiitas do sul receberiam as tropas invasoras com flores nas mãos e ajudariam a depor Saddam, com um golpe de Estado. Como o tempo era muito curto, a profecia seria facilmente confirmada ou desmentida. E, para desgosto dos analistas, os prognósticos não se realizaram. Não houve, porém, nenhum mea culpa, pois as análises, antes assumidas como originais, passaram a ser atribuídas ao governo americano. Assim, teve início uma segunda onda na imprensa: a guerra seria muito mais longa do que o previsto; a coalizão anglo-americana enfrentaria resistência feroz no sul; os iraquianos se uniriam em torno de Saddam para defender a sua terra; os xiitas do sul não mandariam mais flores; a batalha por Bagdá seria duríssima, talvez uma nova Stalingrado; e, finalmente, Rumsfeld teria sido um idiota por não ter mandado uma tropa maior para o Iraque, acreditando apenas na supremacia tecnológica americana (foram muitos artigos discutindo os erros dos americanos e freqüentes as manchetes como "Rumsfeld está acuado").

Hoje, três semanas depois de iniciada a guerra, vive-se o início de uma terceira fase. Como Bagdá já está nas mãos dos americanos, as críticas aos erros serão esquecidas e pouco a pouco será como se sempre se soubesse que a guerra seria de fato curta. Mas, como as neuroses são de tratamento difícil, logo terá início uma quarta fase. Ela vai girar em torno de três pontos: dirão que a resistência internacional ao papel preponderante dos EUA na reconstrução do Iraque será um obstáculo de grande envergadura aos planos de Bush, as teses de que o Iraque se fragmentará voltarão à tona e será uma certeza o recrudescimento do terrorismo. E, se nada disso acontecer, não haverá problema: novas teses ocuparão o lugar das velhas.

Em casos de grande complexidade, como uma guerra, em que a própria informação, divulgada ou omitida pelas fontes, é uma arma, mais legítimo seria apresentar, com humildade, múltiplos cenários e poucas certezas. O público sairia ganhando.