"As eleições e a guerra", O Globo, 14/11/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"As eleições e a guerra", O Globo, 14/11/2006

Dois dias depois das eleições americanas em 2004, publiquei um artigo cujo título era: "Foi a guerra, idiota". Era uma resposta à quase unanimidade que se formara para justificar a vitória de Bush: a ênfase nos valores morais, a América profunda, o votos dos renascidos em Cristo teriam determinado a reeleição. O título era uma citação a James Carville, marqueteiro de Clinton, que cunhou a frase "é a economia, idiota" ao perceber que, apesar da vitória de Bush pai no Iraque, o mau desempenho da economia teria um peso fundamental na eleição de 1992. No meu artigo, eu dizia que, em 2004, o determinante era a guerra, o desejo que os americanos tinham de que o conflito no Iraque e a luta contra o terror chegassem a bom termo.

Dois anos depois, eu não mudei de opinião, mas os outros, sim. Agora, para eles, não foram os valores morais, mas a guerra, o determinante nesta eleição. Estão certos agora e errados antes. Se em 2004, o conservadorismo religioso tivesse sido o fator fundamental, por que teria deixado de ser hoje? Afinal, a América profunda continua a mesma, acreditando nas mesmas coisas, e certamente, de uma hora para outra, não viu nos democratas os seus defensores. A América profunda está onde sempre esteve, porque, hoje como em 2004, não foi ela, mas a guerra, o que pesou na eleição.

Em 2004, a avaliação de que o conservadorismo religioso tinha sido o xis da questão decorreu de pesquisas de opinião, mal lidas. Uma delas constatava que para a maior parte dos eleitores, 22%, os valores morais eram o fator determinante na escolha do candidato. Mas o que esse contingente mais prezava num presidente? Apenas 23% diziam que era uma forte fé religiosa; 21% queriam um líder que tivesse posições claras; 19% queriam um líder forte; 9% queriam um presidente que trouxesse mudanças e 28% relatavam outras características. Ou seja, apenas 5% do eleitorado total estavam preocupados com religião. Quase ninguém.

Além disso, se 22% disseram que os valores morais eram o determinante, 20% afirmaram que era a economia, uma diferença pequena. E mais: 19% acreditavam que o principal era o terrorismo e 15%, o Iraque. Somados os dois temas, irmãos gêmeos, o que a pesquisa mostrava mesmo era que o fator decisivo em 2004 era algo que poderíamos chamar de "a guerra". Zero religião. Neste ano, nada mudou, porque a preocupação continua a mesma: o fracasso de Bush em controlar a situação no Iraque foi decisivo para que ele perdesse o controle da Câmara e do Senado. Errará, porém, quem achar que o pedido do eleitorado é para que o país saia do Iraque rapidamente e esqueça esse assunto de terrorismo. A mensagem é diferente. O que os americanos desejam é que a coisa certa seja feita no Iraque e que a luta contra o terrorismo continue, de maneira mais competente. Não à toa, grande parte dos democratas vitoriosos era de centro, e nada menos do que dez candidatos democratas eleitos são excombatentes no Iraque. Se os democratas forçarem uma retirada antecipada que faça a situação no Iraque piorar ainda mais pagarão um preço alto em 2008.

Há uma onda na imprensa americana querendo mostrar que os intelectuais que apoiaram a guerra estão arrependidos e que teriam admitido que estavam errados. A revista "Vanity Fair" entrevistou grande parte deles para a sua próxima edição, mas já publicou extratos das entrevistas. Li os depoimentos, e, de fato, há neles muito de desapontamento e autocrítica, mas por terem confiado na capacidade técnica do governo Bush. A análise que fazem, correta, poderia ser resumida nisto: "Se soubéssemos que Bush seria tão incompetente na ocupação do Iraque, teríamos pensado duas vezes antes de apoiar a invasão." Isso não significa que eles estejam dizendo que invadir o Iraque foi um erro.

Repito aqui o que já escrevi algumas vezes. Se apenas com o apoio do Afeganistão, um Estado pária, a al-Qaeda conseguiu derrubar o WTC, atingir o Pentágono e quase atacar ou a Casa Branca ou o Congresso, o que não faria se o Iraque resolvesse apadrinhá-la? Na fatwa em que decretou que é dever de todo muçulmano matar americanos e seus aliados, Bin Laden dedicou metade do texto a elogiar o Iraque, tido como uma vítima dos EUA. E a fatwa é de 1998, muitos anos antes de qualquer invasão. Para uma nação recém-atacada em seu território, evitar que o casamento entre Saddam e Bin Laden viesse a acontecer era uma necessidade de Estado.

Isso não redime Bush de seus erros. A quantidade de soldados sempre foi insuficiente. O espaço para que os remanescentes do baathismo e os terroristas da al-Qaeda fizessem a festa ficou aberto. Hoje, há 152 mil soldados americanos no Iraque, um número pequeno. Para se ter uma idéia, o Estado de São Paulo conta com 140 mil policiais, e, claro, tem muita dificuldade de controlar o PCC quando ele resolve dar trabalho. No Iraque, seriam necessários muitos mais homens, mas onde encontrá-los?

Os EUA acudiram a Europa três vezes no século passado, a um enorme custo de vidas e dinheiro, sempre defendendo-a de ameaças à liberdade. Na primeira vez em que, atacados, precisaram da Europa, ouviram um não. Reino Unido e outros poucos países mandaram, no máximo, 20 mil soldados. Houvesse de fato uma solidariedade intensa com os EUA, o número de homens teria sido imensamente maior, e a situação hoje, provavelmente, estaria sob controle.

Antes da guerra, era comum ouvir que sunitas, xiitas e curdos, sem Saddam, entrariam em guerra civil. Hoje, alguns vêem essa realidade concretizada, mas é o oposto. É como se os terroristas comungassem da mesma expectativa, porque tentam de tudo para fazer essa guerra eclodir: xiitas são mortos em suas datas festivas, o que gera ondas de retaliação. Mas isso não é guerra civil, é o caos resultante de provocações. A guerra civil acontece quando os grupos, separados, pegam em armas para tomar o poder, subjugar os outros ou deles se separar. Que isso ainda não tenha acontecido, apesar dos esforços cotidianos dos terroristas, é a prova de que a possibilidade de uma guerra civil, sem a intervenção do terror, era remota.

De qualquer forma, o povo americano deu o recado: quer competência no combate. Bush reagiu, demitindo Rumsfeld. Falta anunciar uma nova estratégia. Agora, a imprensa diz que o presidente será um morto-vivo, uma vez que perdeu o controle do Senado e da Câmara. Bobagem. Clinton, em seus oito anos de poder, governou os últimos seis com as duas casas sob domínio republicano. Foi ao final, pessoalmente quase devorado, mas sobreviveu, vendo os interesses do país preservados. Com Bush, serão apenas dois anos.