"O erro de Bush na ONU", O Globo, 27/03/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O erro de Bush na ONU", O Globo, 27/03/2003

A maior parte dos analistas diz que a decisão dos EUA de ir à guerra sem o aval do Conselho de Segurança põe o mundo em perigo: a ONU passaria a ter um papel irrelevante. A História nos mostra, porém, que pouca coisa mudou na maneira de agir dos EUA e que, portanto, pouca coisa vai mudar no papel da ONU. Talvez o equívoco da diplomacia americana tenha sido exatamente tentar fazer, desta vez, a comunidade internacional compartilhar os seus temores.

No 11 de Setembro, acreditava-se que a reação americana, tanto contra o Afeganistão como contra outros inimigos, como o Iraque, seria imediata. Se tivesse sido, a repercussão teria sido menos negativa do que é hoje. Os EUA, porém, passaram 27 dias tentando provar ao mundo, na ONU, que Bin Laden era a mente por trás dos atentados. Na época, o teórico Noam Chomsky, como sempre apressadamente, dizia que Bush fracassara ao não conseguir exibir a prova cabal e que, portanto, o ataque seria ilegítimo. Muito tempo depois, quando Bin Laden confessou a autoria e deu parabéns póstumos aos terroristas, Chomsky não se corrigiu.

Apesar de tudo, os EUA acabaram conseguindo o aval da ONU, um aval indireto. O Conselho de Segurança aprovou uma resolução que falava em combater o terrorismo, "por todos os meios". Com o apoio entusiasmado da França, os EUA foram à guerra agarrados apenas nessa expressão: "por todos os meios". Com o Iraque, um ano e meio depois do 11 de Setembro, Bush novamente tentou contrariar a prática americana de agir sozinho, mas fracassou, já tendo contra si a amnésia que se abate sobre as multidões.

Curiosa é a posição da França. No caso do Afeganistão, aceitou a ação militar como legítima, mesmo sem uma resolução expressa da ONU nesse sentido; no caso do Iraque, discordou quando os EUA disseram que uma resolução expressa autorizando a guerra seria desnecessária porque a anterior deixara claro que o país "sofreria conseqüências graves" se não se desarmasse. Os EUA decidiram então ir à guerra mesmo sozinhos, como sempre fizeram. Sem que a ONU desaparecesse por isso.

Depois da Segunda Guerra, com o mundo dividido em dois blocos, o Conselho de Segurança era inútil: o que interessava aos EUA, a URSS vetava e vice-versa. Um retrospecto, da década de 80 para cá, é instrutivo (antes, o poderio da URSS continha os EUA e vice-versa; depois, mesmo antes da queda do Muro de Berlim, a fraqueza dos sovié- ticos permitiu os vôos solos americanos). Em 1983, depois que um golpe da extrema esquerda derrubou o primeiroministro de Granada, Maurice Bishop, ele também um esquerdista, Ronald Reagan, invadiu a ilha e pôs no poder seus aliados. Seu objetivo era impedir que Granada se tornasse um satélite soviético. Em 1986, após muitas escaramuças, quando um atentado a bomba numa discoteca de Berlim matou duas pessoas, incluindo um americano, os EUA culparam a Líbia e lançaram um pesado ataque a Trípoli. Em 1989, depois de meses de provocações, o ditador panamenho Manuel Noriega sofreu a ira de George Bush, o pai: o Panamá foi invadido por 27 mil soldados e Noriega, preso, foi levado para os EUA, onde cumpre pena de prisão perpétua por tráfico de drogas. Em 1994, o democrata Bill Clinton invadiu o Haiti para devolver o poder ao presidente deposto Jean-Baptiste Aristide. Em 1998, em resposta aos atentados a bomba às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, o mesmo Clinton desfechou um ataque aéreo ao Sudão, acusado de abrigar terroristas. E, em 1999, diante do veto russo, na ONU, à intervenção armada no conflito da Bósnia, Clinton conseguiu que a Otan entrasse no conflito para evitar o massacre dos muçulmanos de Kosovo.

Por espantoso que possa parecer, foi a insistência de Bush em conseguir o aval da ONU, contrariando a política de seus antecessores, que levou os Estados Unidos a esse imenso desgaste internacional. E não o contrário. Às suspeitas dos outros países de que a guerra era só por petróleo, Bush respondeu com o convite para que todos participassem da campanha, o que impediria, na prática, que os EUA fizessem valer apenas os seus interesses. O mundo não quis.

Com a queda do Muro, acreditou-se que o Conselho de Segurança finalmente desempenharia as funções para as quais foi criado. Talvez essa tenha sido a crença de Bush. Isso, no entanto, não aconteceu (a primeira Guerra do Golfo foi o seu único grande momento). Agora, na ausência da URSS, parte da Europa tentou reviver a polarização do mundo em dois blocos. Com as amea- ças de veto, porém, só conseguiu reviver a inutilidade do Conselho de Segurança, porque lhe faltou o poderio militar e a disposição dos soviéticos.

A ONU, contudo, não vai desaparecer: voltará a ser apenas o que era. O Conselho de Segurança se recolherá ao ostracismo e, em contrapartida, a Assembléia Geral, que perdera importância, reviverá os seus melhores momentos. A vocação da ONU é mesmo ser um grande fórum de debates.

No próximo artigo, vou falar de petróleo, tentando mostrar que nem os Estados Unidos foram à guerra para obtê-lo, nem a França ameaçou com o veto apenas para manter seus interesses no Iraque.