"Estado e Cidadão", O Globo, 09/01/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"Estado e Cidadão", O Globo, 09/01/2007

A maior apreensão era a Linha Vermelha. A viagem caiu no dia 3 de janeiro, ainda sob o impacto dos ataques no Rio. Por esse motivo, mesmo o vôo sendo às 23h, eu, minha mulher, Patrícia, e minhas enteadas, Alice, de 15 anos, e Sofia, de 13, saímos de casa às 19h30m. Quando deixamos para trás a Perimetral, disse ao motorista: "Um perigo já passou." Ele estava confiante: "Nada vai acontecer." Tinha razão: chegamos inteiros, eu decepcionado comigo próprio por ser um carioca com medo da Linha Vermelha.

Percebi logo que o meu medo deveria ser outro. No check-in, a pergunta já esperada: "Vocês têm autorização do pai das meninas para viajar?" Pouco antes de sairmos de casa, lembramos que nos esquecêramos de fazer a autorização. Telefonamos para a agência de viagem e fomos informados de que, sem o papel com firma reconhecida, o pai teria de autorizar o embarque pessoalmente. Antônio, superbom pai, não se negou a colaborar. O funcionário da companhia aérea interrompeu o check-in e nos recomendou que procurássemos a Polícia Federal para saber se uma autorização ao vivo e em cores seria aceita.

Um policial já estava dando explicações a um grupo de pais aflitos. "Só viaja com autorização por escrito e com firma reconhecida." Não achei isso possível: "Mas o pai virá pessoalmente, com todos os documentos e dará a autorização!" O policial, arrogante, decretou: "Sem firma reconhecida, as meninas não viajam." Atônito, perguntei se havia algum cartório aberto, e ele me olhou como se eu fosse um idiota: "Cartórios fecham às cinco. Havia um plantão do juizado de menores no Sambódromo, mas eles fizeram a sacanagem de fechar."

Num posto do juizado, uma funcionária confirmava que nada poderia ser feito: não havia plantão. Liguei para dois tabeliães, e eles explicaram que, com o cartório fechado, nada era possível. A viagem parecia ter terminado antes de começar. E a culpa não era da Linha Vermelha. Quando Antônio chegou, voltou ao policial, mas recebeu dele a mesma resposta. Por sorte, uma senhora ouviu a conversa e nos deu o endereço no Centro onde haveria um plantão. "Lá, vocês vão conseguir", disse, dando nova explicação: portaria baixada pelo Juizado de Menores no dia anterior, sem publicidade, mudara o regulamento, exigindo uma autorização de um juiz para que algum menor viaje para o exterior na ausência de um dos pais.

Eram 21h10m. Deixamos as malas com nosso agente de viagem, a quem pedimos ajuda, e rumamos para o Centro em dois táxis. Chegamos às 21h30m. Depois de entrarmos, um a um, através de duas portas de vidro automáticas, tivemos de mostrar as carteiras de identidade, cujos dados foram anotados lentamente. Para quem tem vôo marcado para as 23h, é um suplício. Os três guardas já sabiam o que queríamos: não éramos os primeiros, não seríamos os últimos. Uma família já estava sendo atendida, sem mais chance de voar, porque perdera o vôo. "Tudo leva meia hora", disse um dos guardas, acrescentando, diante de nossa perplexidade: "É pouco tempo. Antes eram mais de quatro horas."

Imploramos (esse é o termo) para que ele explicasse a quem de direito que o nosso caso era urgente e simples: poderíamos voar se tudo fosse rápido, e o pai e a mãe estavam ali, de acordo. Mas os guardas disseram que não poderiam incomodar o comissário. Depois de pedirmos umas dez vezes, um dos guardas fez sinal para que o comissário nos recebesse. Patrícia e Antônio explicaram a situação e o comissário mentiu: "Em cinco minutos, tudo estará resolvido." Puxou dois formulários enormes, um para cada criança, aos quais deveriam ser anexados passaportes e passagens. Tudo preenchido, o comissário deu a notícia angustiante: o caso seria analisado pelo promotor, que redigiria um parecer a ser acolhido ou não pela juíza. Parecer? Mas se os pais estão de acordo! Minha mulher implorou que ele avisasse ao promotor que, se fosse ágil, poderíamos embarcar. O agente de viagem me dizia ao telefone que estava tendo a boa vontade da companhia aérea, mas tínhamos de sair de lá em instantes. O comissário, risonho, dizia: "Não posso incomodar o promotor."

Antônio e Patrícia acharam um outro funcionário, que se dispôs a conversar com o promotor. Eram já 22h, e nos sentimos esperançosos. Mas o jantar do funcionário bonzinho (uma quentinha e uma garrafa pet de CocaCola) chegou, e ele desapareceu por uma porta. Instantes depois, Patrícia conseguiu avistá-lo por uma fresta, jantando, e implorou novamente ajuda. Ele foi ao promotor e voltou dizendo: "Está quase terminando o parecer." Eram 22h10m, e estávamos pessimistas. Não viajar seria um grande prejuízo: hotéis pagos e vôos lotados até a semana seguinte.

De repente, o promotor apareceu para, muito bondosamente (deixou isso claro), tirar dúvidas. Por que as meninas tinham o sobrenome do pai e da mãe? Por que a mãe não tinha o sobrenome do pai das meninas? Por que o pai se declarou divorciado, enquanto a mãe se dizia casada? Antô- nio foi sucinto: "Porque elas são nossas filhas. Porque sou divorciado. Porque ela se casou de novo." O promotor teve a coragem de dizer: "Imaginei, mas me aconselhei com a juíza e achei por bem perguntar."

Deu as costas e sumiu. Eram 22h20m. Cinco minutos depois, um funcionário trouxe a autorização, mas não era o fim. Era preciso assinar todas as vias e tirar cópias das identidades, das passagens e dos passaportes. Por que não fizeram isso antes, jamais saberemos.

Às 22h30m, uma hora depois de ali chegarmos, saímos correndo. O agente de viagem disse que, àquela hora, só com um milagre embarcaríamos. Os motoristas de táxi que nos esperavam e a companhia aérea operaram o milagre: cruzamos a Perimetral e a Linha Vermelha sem pensar nos riscos. Fomos os últimos passageiros a embarcar. Eram 23h10m.

Por que conto tudo isso? Para mostrar a impotência dos cidadãos diante de um Estado, às vezes forte, quase sempre inepto.