"EUA", O Globo, 13/05/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"EUA", O Globo, 13/05/2008

Assim que a campanha se definir, o Iraque voltará a ser um dos grandes temas da corrida presidencial americana. O leitor já está cansado de ler que a guerra foi um atoleiro, que os EUA não sabem mais lutar, que o nú- mero de mortos em combate atinge níveis alarmantes e que o Iraque estará pior no futuro do que esteve no passado sob Saddam, graças à burrice de George Bush.

Será mesmo?

Em 1952, na Guerra da Coréia, Chu En-Lai, então primeiro-ministro chinês, foi a Moscou cobrar de Stalin a ajuda militar que Mao vinha implorando à URSS havia tempos. Logo no início da guerra, em 1950, os soldados chineses que foram em massa para a Coréia impuseram aos soldados da ONU, americanos em sua imensa maioria, derrotas pesadas: não somente o Paralelo 38, que separava as duas Coréias, tinha sido ultrapassado pelos chineses, como a própria Seul caíra em poder dos comunistas. Foram dias difíceis. Em dezembro de 1950, o presidente Truman declarou estado de emergência nacional, o que não acontecera na Segunda Guerra Mundial nem tampouco aconteceria na Guerra do Vietnã. "Nossos lares, nossa nação (...) estão em perigo", disse. Pouco mais de um mês depois, um contra-ataque da ONU começou a reverter o quadro, com perdas enormes para os chineses: cerca de três milhões de chineses foram enviados à Coréia e estima-se que pelo menos 400 mil tenham morrido (o governo chinês oficialmente admite 152 mil mortos). Os números americanos eram menores — cerca de 37 mil mortos — mas considerados intoleráveis pela opinião pú- blica: naquele ano, o apoio à guerra atingiu o número mais baixo, apenas 33% dos americanos eram favoráveis à continuação do conflito, um número menor do que os que hoje são favoráveis à manutenção de tropas no Iraque, 42% segundo a última pesquisa (fevereiro) do Pew Research Center. Como resultado, Eisenhower, que fez campanha prometendo ir pessoalmente à Coréia para pôr fim à guerra, encerrou mais de 20 anos de comando democrata na Casa Branca, com uma vitória mais do que acachapante.

Não era à toa que Stalin estava radiante diante de Chu. "A guerra na Coréia mostrou a fraqueza dos Estados Unidos. As principais armas dos americanos são meias femininas, cigarros e outras mercadorias. Eles querem subjugar o mundo, mas não são capazes de dominar a pequena Coréia. Não, os americanos não sabem lutar. Os americanos não são capazes de lutar uma guerra em larga escala, especialmente depois da guerra na Coréia" (as informações sobre a Guerra da Coréia foram tiradas do livro "Mao, a história desconhecida", de Jung Chang e Jon Halliday, cuja leitura recomendo fortemente). Stalin morreria sem ver o fim da guerra.

A Coréia do Norte, comunista radical até hoje, transformou-se num Estado pária, e a Coréia do Sul é um dos países mais dinâmicos da Ásia. Capitalista, claro. Embora tenha vivido a maior parte de sua história desde então sob a chaga de regimes autoritários (desde 1988, pode-se dizer, vive uma experiência democrática), a Coréia do Sul atingiu um alto índice de desenvolvimento humano e econômico, salvo uma derrapagem na crise da Ásia em 1997. Tem uma indústria nacional poderosa e que compete no mundo inteiro (de muitas, cito apenas três empresas: Hyundai, LG e Samsung).

Depois da Guerra do Vietnã, a reputação militar dos EUA voltou novamente a ser motivo de piada. Com cerca de 60 mil soldados mortos ou desaparecidos em combate, a derrota americana foi humilhante, e muitos repetiam a ladainha de que os americanos não sabem lutar. Hoje, tantos anos depois, pode-se dizer que Stalin tinha razão ao menos num ponto. Não, a máquina de guerra americana não é nem de longe incapaz, mas, de fato, suas principais armas são outras: não apenas meias femininas e cigarro, mas bens e serviços de todos os tipos. Mais da metade da economia vietnamita está atualmente em mãos estrangeiras (em 2007, foram US$ 10 bi em investimentos diretos), e os EUA estão na ponta, quando se consideram investimentos totais, feitos diretamente ou por meio de outros países. Empresas americanas como Nike, Intel, Canon, Coca-Cola, Visa, para citar apenas algumas entre milhares, fazem a festa no Vietnã, aproveitando mão-deobra vietnamita, barata, para se expandir ainda mais pelo mundo inteiro. Os principais investimentos americanos no país são petróleo e gás. Há anos, desde que se abriu para uma espécie de capitalismo em 1986, o Vietnã cresce a taxas superiores a 7% (ano passado, o crescimento foi de 8,4%). O país continua pobre, com uma renda per capita de apenas US$ 726 (contra quase US$ 8.000 dos brasileiros), e não está pior graças ao capitalismo recente: o atraso foi decorrência de décadas de guerra e de um socialismo fechado.

Comparando-se o que aconteceu na Coréia do Sul, um aliado, com o que aconteceu com o Vietnã, um ex-inimigo, pode-se ter uma idéia, talvez, sobre o que pode acontecer com o Iraque, dependendo do desfecho do conflito naquele país. Daqui a décadas, veremos um Iraque com uma economia forte, empresas próprias e prósperas, como a Coréia do Sul, ou um país lutando desesperadamente para alcançar o desenvolvimento, necessitando de empresas estrangeiras, como no Vietnã? Quando se analisam outros eventos históricos de grandes proporções, a Guerra do Iraque ganha uma nova dimensão. O total de soldados americanos mortos no conflito em cinco anos é de 4.076, uma tragédia, mas um décimo das mortes na Coréia em apenas três anos.

Não me xinguem, mas ainda é muito cedo para se dizer com certeza o que significou o Iraque para a segurança dos EUA e do mundo (embora seja inegável que, até aqui, nenhum atentado foi cometido em solo americano, toc, toc, toc). A História leva tempo para julgar os fatos.