"Foi a guerra, idiota!", O Globo, 06/11/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Foi a guerra, idiota!", O Globo, 06/11/2004'

WASHINGTON. A essa altura das eleições americanas, os leitores do mundo inteiro já devem estar convencidos de que Bush se reelegeu porque conseguiu levar às urnas um número recorde de evangélicos brancos ou renascidos em Cristo, contrários ao aborto, ao casamento gay e que quase nunca votam. Isso não é verdade.

Uma pesquisa de boca de urna foi feita pela Edison/Mitofsky para um consórcio formado pela ABC News, Associated Press, CBS News, CNN, Fox News e NBC News. Os resultados desmentem a teoria da "eleição evangélica". A primeira crença desmentida foi a do maciço comparecimento de eleitores que estariam votando pela primeira vez. Em 2004, eles foram 11% contra 9% em 2000, um aumento inexpressivo. Mais relevantes seriam os 17% que não votaram em 2000, mas votaram em 2004. Esse número inclui os que votaram pela primeira vez e os que deixaram de votar em 2000. Incluiria também, claro, os tais quatro milhões de evangélicos que deixaram de votar em 2000 se eles de fato tivessem votado em 2004. Mas, notem, destes 17%, 54% votaram em Kerry e apenas 45% votaram em Bush. Ora, se é assim, os brancos evangélicos ou renascidos em Cristo não tiveram nesta eleição um papel diferente do que tiveram em eleições passadas.

Pelo que dizem os números, 23% de evangélicos brancos ou renascidos em Cristo votaram nesta eleição, um nú- mero não superior ao de elei- ções passadas. Destes, 78% votaram em Bush (portanto, do total do eleitorado, os renascidos em Cristo que votaram em Bush foram apenas 17%). Do total de eleitores, 54% eram protestantes (59% votaram em Bush e 41%, no católico Kerry); 27% eram católicos (52% votaram no protestante Bush e 47% em Kerry); 3% eram judeus (25% votaram em Bush e 74%, em Kerry); 10% se declararam sem religião (31% votaram em Bush, 67% votaram em Kerry). Com exceção dos renascidos em Cristo, os votantes cristãos se dividiram mais ou menos entre os dois, com vantagem para Bush.

Os leitores também cansaram de ler que a principal questão para definir um voto nesta eleição foram os valores morais, o que teria decididamente beneficiado Bush. Mas isso é uma meiaverdade ou uma meia-mentira. Porque apenas 22% dos eleitores disseram que os valores morais eram a principal questão. Vinte por cento disseram que o que importava era a economia. Dois pontos percentuais separando uma questão da outra não permitem a analista algum dizer que foram os valores morais o pontochave da eleição. Mais significativo é o que esses 22% que defendem os valores morais mais prezam num candidato: apenas 23% dizem que é uma forte fé religiosa; 21% querem um líder que tenha posições claras; 19% querem um líder forte; 9% querem um presidente que traga mudanças e 28% relatam outras características. Ou seja, apenas 5% do eleitorado total estavam preocupados com religião. Quase ninguém. Além dos valores morais e da economia, preocupavam os americanos: terrorismo (19%), Iraque (15%), sistema de saúde (8%), impostos (5%) e educação (4%).

Não há dúvida de que Bush é conservador e defende posições extremadas no campo da fé e da moral, posições que eu condeno. Sou a favor da liberdade dos indivíduos, do casamento gay e de que as mulheres possam fazer as suas escolhas. Fé e política não devem se misturar e, pelo que os números mostram, os americanos têm um claro entendimento sobre isso.

O que estava em jogo na eleição era a guerra contra o terror islâmico. Juntando os quesitos "Terrorismo" e "Iraque", eles somam 35% das preocupações dos americanos, bem acima dos tais "valores morais". E a maior parte dos eleitores mostrou que sabe o perigo que o mundo corre. O resto é bobagem, preconceito sem base em números. Não foi a América profunda, a luta contra aborto ou gays que decidiram a eleição. Como diria aquele assessor de Clinton: "Foi a guerra, idiota!"