"Fome?", O Globo, 19/04/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Fome?", O Globo, 19/04/2005

"Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?"

Teve dificuldade para entender pergunta tão mal formulada? Qualquer um teria. Mas ela faz parte do suplemento sobre segurança alimentar da PNAD-2004, do IBGE. A pesquisa pretende avaliar "o acesso à alimentação de qualidade, em quantidade e regularidade adequada a um padrão de vida satisfatório". Os pesquisadores foram a campo entre setembro e dezembro do ano passado, e o custo do suplemento, R$ 2 milhões, foi pago pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Não sou adivinho, mas sei qual será o resultado, a ser divulgado em setembro: o número de brasileiros expostos à insegurança alimentar severa será altíssimo. E o Bolsa Família estará de novo plenamente justificado.

Para que o leitor comprove que a pesquisa pode apresentar um falsopositivo, vou reproduzir aqui algumas perguntas da pesquisa e imaginar possíveis respostas:

• "Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?" "Sim", diria o hipotético entrevistado, pensando nas duas caixas de biscoitos finos que a filha come toda semana e que ele teme não ter mais dinheiro para comprar na mesma quantidade.

• "Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?" "Sim", diria o entrevistado, acreditando que a dieta alternada de carne ou ave ou peixe, com feijão, arroz e salada, que a sua família come todos os dias, por ser repetitiva, é pouco saudável, quando na verdadeéarecomendada pelos nutricionistas.

• "Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade diminuiu, alguma vez, a quantidade de alimentos nas refeições porque não havia dinheiro para comprar comida?" "Sim", diria o nosso personagem, que, antes, comia uma verdadeira "montanha" e ainda repetia, e, em função de restrições orçamentárias, passou a comer apenas a "montanha", sem repeti-la.

• "Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida?" "Sim" seria a resposta de alguém que, no fim da tarde, deixasse de comer um sanduí- che no McDonald's, porque o dinheiro está curto, sendo obrigado a matar a fome no jantar, em casa. Das 36 perguntas, apenas três são formuladas de maneira clara. Em apenas uma dessas três, o manual técnico do entrevistador afirma que não se deve levar em conta óleo, manteiga, sal, açúcar etc. Em todas as outras, nada instrui o entrevistador sobre como esclarecer previamente o entrevistado para evitar as distorções apontadas acima.

O IBGE, cuja excelência é inquestionável, e os técnicos do MDS fizeram, no entanto, todo o dever de casa. Antes de aplicar a pesquisa, avaliaram o questionário com especialistas e fizeram grupos de discussão compostos pelo público-alvo para testar o entendimento de algumas palavras e conceitos ("alimentação saudável", "alimento nutritivo", "dinheiro suficiente", "fome"). Fizeram as modificações necessárias e, depois, aplicaram o questionário, como teste, em quatro cidades. O resultado, segundo o IBGE, foi positivo: a insegurança alimentar mais severa foi constatada entre os de mais baixa renda. O questionário foi, assim, "validado" para aplicação nacional. Como de todo esse trabalho técnico resultaram perguntas tão mal formuladas é algo que me intriga.

Contudo, mesmo se a redação fosse perfeita, a pesquisa continuaria a ter pouco valor. O problema é da própria metodologia, adotada em muitos países. O questionário brasileiro, por exemplo, foi inspirado no americano, que vem sendo aplicado desde 1995. Embora nem de longe apresente os vícios de redação do seu congênere brasileiro, o americano gera o mesmo equívoco. Embora o órgão pesquisador advirta que nos EUA não haja a mesma fome do "Terceiro Mundo", sua crença é a de que o país sofra insegurança alimentar. Difícil conciliar essa crença com a constatação de que mesmo nas regiões mais pobres das mais pobres cidades americanas é impossível achar pessoas que não sejam gordas.

O maior programa americano de combate à fome é o Cartão Alimentação ("Food Stamp Program"), criado em 1939 e que passou por muitas evoluções até se tornar permanente em 1964. Quem imagina que o Fome Zero ou o Bolsa Família sejam inéditos está, portanto, enganado. O programa distribui cartões magnéticos (antes eram cupons), utilizados para adquirir comida em lojas credenciadas. Todos abaixo da linha da pobreza têm direito a receber o benefício. São 21,3 milhões de beneficiários, que recebem, em mé- dia, US$ 80 per capita (o benefício máximo para famílias de três pessoas é de US$ 393). O cartão alimentação é igual ao Bolsa Família, com duas diferenças: aqui, o beneficiário não precisa provar nada e, com o dinheiro, pode comprar o que quiser. O Cartão Alimentação americano é apenas um dos 15 programas de distribuição de alimentos nos EUA, ao custo de US$ 41,6 bilhões ao ano. Apesar disso, a última pesquisa feita lá indica que 36,3 milhões de americanos, incluindo 13,3 milhões de crianças, vivem em lares com insegurança alimentar. Destes, 6,6 milhões de adultos e 3 milhões de crianças vivem em lares onde pelo menos uma pessoa passou fome propriamente dita.

Se nem na nação mais próspera do planeta, com os seus programas assistenciais multimilionários, a insegurança alimentar foi resolvida, o problema não é do país, mas do conceito de insegurança alimentar. Portanto, que os brasileiros não se assustem em setembro: aqui o problema pode não ser também nosso, mas da pesquisa.

PS: O Bolsa Família, com recursos bilionários, continua carecendo de transparência. O primeiro perfil socioeconômico dos cadastrados mostrou-se incompatível com o perfil do público-alvo. Prometeu-se para o meio do ano passado a divulgação de um novo perfil. Até agora, nada.