"O haxixe e o homem-bomba", O Globo, 03/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"O haxixe e o homem-bomba", O Globo, 03/04/2003

Semana passada, o Arnaldo Jabor saiu-se com a seguinte tirada na TV Globo: "Sabem por que aquela bomba gigante chama-se a mãe de todas as bombas? Porque vai gerar milhares de homens-bomba". Parecia profecia, porque, já no dia seguinte, um militar suicida iraquiano explodiu o carro em que estava, matando quatro soldados americanos. E o ministro das Relações Exteriores do Iraque, o cristão Tarik Aziz, deu as boas-vindas a quatro mil homensbombas que teriam chegado ao Iraque para combater os EUA. Tudo isso me fez pensar que fenômeno leva alguém a se matar para matar outras pessoas.

A mesma pergunta se fizeram os muçulmanos do século XI quando pela primeira vez o fenômeno irrompeu naqueles lados do mundo, pelas mãos de uma seita que se dizia também muçulmana. E, diante da loucura do expediente, que contrariava todos os ensinamentos do Alcorão, a resposta encontrada foi uma só: haxixe, eles só podiam fazer aquela loucura drogados. Nunca se provou a tese, mas os muçulmanos apelidaram os adeptos daquele método de os "Hashshashin" (os que fumam haxixe), palavra que entrou em muitas línguas como "assassinos".

Os suicidas pertenciam a uma seita fundada, em 1090, por Hassan e-Sabbah, um persa xiita que tomou a si o projeto de restabelecer o califado, restituindo-lhe a glória como no tempo do Profeta. O mundo islâmico, no ano de seu nascimento, em 1048, era xiita: desde 932, um poderoso grupo xiita, os Buwayhidas, dominava Bagdá e ditava suas leis ao próprio califa, que era sunita. No Egito, um outro grupo xiita, os fatímidas, chefiava um segundo califado.

Mas as coisas logo começaram a mudar. Em 1055, os turcos seldjú- cidas, sunitas, invadiram Bagdá, perseguindo os xiitas e fazendo prevalecer a crença sunita (o califa continuou a ser uma figura decorativa, sem poder real). Anos depois, no Egito, o califa xiita também passou a ser uma marionete nas mãos do seu vizir armênio. Hassan quis pôr um fim a isso, aliando-se a Nizar, o filho mais velho do califa do Egito. Seu plano? Ataques suicidas contra seus oponentes.

O crime devia acontecer à luz do dia, no lugar mais movimentado da cidade, de preferência numa mesquita bem cheia durante as orações de sexta-feira. Para que o ato tivesse ampla repercussão e provocasse medo. O primeiro crime aconteceu em 1092 e teve como alvo ninguém menos do que Nizam el-Mulk, o vizir turco que durante trinta anos organizara o poder sunita.

Ele foi assassinado por um adepto de Hasan em 14 de outubro de 1092. Apesar do sucesso da empreitada, o plano de restituir a gló- ria ao califado fracassou, pois Nizar, o filho do antigo califa xiita, não conseguiu tomar o poder no Egito e foi emparedado vivo. Hasan não desistiu, porém. Ele organizou cada vez mais a sua seita com o objetivo de destruir seus oponentes sunitas. Seus crimes seguiram sempre a mesma técnica suicida: seus adeptos disfarçavam-se como pessoas comuns, pedintes, mercadores, crentes e, quando a vítima passava à sua frente, enfiavam-lhes a adaga até que morressem. Faziam isso sabendo que seriam mortos imediatamente, pois agiam sozinhos, sem possibilidade de defesa. Mas tinham sempre um sorriso nos lábios, porque acreditavam piamente em tudo o que Hasan lhes dizia: não morrerão, mas entrarão direto no paraíso, terão autorização para ver a face de Deus, disporão dos serviços de 72 virgens e poderão indicar outros setenta parentes para que entrem também no paraí- so. A seita aterrorizou o Oriente Médio por mais de 150 anos, tutelou, pelo terror, muitos emires, até serem exterminados de vez pelos mongóis e sultões mamelucos.

De vez? Bem o método deles ressurgiu em 1983, no Líbano e, agora, ironia da História, seus adeptos vivem o seu ápice com a al- Qaeda, de Osama bin Laden, e seus congê- neres do grupo Hamas e Jihad Islâ- mica, todos ultra-ordoxos sunitas, os inimigos contra os quais se batia a seita de Hasan e-Sabah.

Como uma crença da Idade Média pode ser revivida em pleno século XXI é assunto para outro artigo.