"O Iraque e o motorista jordaniano", O Globo, 16/03/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O Iraque e o motorista jordaniano", O Globo, 16/03/2003

Cláudio Duarte

"O Iraque e o motorista jordaniano", O Globo, 16/03/2003

Editora de Arte

"O Iraque e o motorista jordaniano", O Globo, 16/03/2003

Nas últimas férias, em novembro passado, minha mulher e eu estávamos viajando de Amã, na Jordânia, para Damasco, na Síria, e o motorista não parava de definir o caráter nacional dos países da região. Fazia com gosto. Dos iraquianos, dizia que, antes da guerra, costumavam ser bem-humorados, felizes, sempre prontos a contar uma piada. Dos kuwaitianos, dizia que eram fechados, atrasados e severos com as mulheres, mas com elites muito extrovertidas e gastadoras quando no exterior. A definição mais elogiosa, naturalmente, era para os jordanianos, um povo trabalhador, solidário, religioso, mas sem exageros. E a definição mais cruel foi reservada para os sauditas.

"São uns prepotentes", dizia o motorista. "Eram uns beduínos sem dinheiro, mas, com o petróleo, passaram a se sentir os donos do mundo". Para comprovar a tese, contava um episódio que teria protagonizado: "Um dia, pediram-me que eu os levasse para as coisas belas de Amã. Era uma maneira sutil de me mandar procurar mulheres, mas eu me fiz de desentendido. Levei-os para a ruína do Templo de Hércules. Quando chegamos, os sauditas, furiosos, perguntaram: 'Onde estão as mulheres?' Era o que eu pretendia: ouvir isso sem sutilezas".

O que o motorista disse que fez depois foi genial. "Eu disse a eles: 'Ah, mulheres, agora entendo'. E rumei direto para a embaixada da Arábia Saudita. Na porta, botei-os para fora dizendo que se eles queriam prostitutas que alugassem os serviços das sauditas, porque, nas jordanianas, eles não poriam as mãos jamais! Os sauditas são assim".

Enfim, uma dessas generalizações que nada dizem. Mas faço o relato aqui porque a visão do motorista se choca com a opinião de quase todos os analistas. Para eles, o Iraque corre o sério risco de se desintegrar após a queda de Saddam Hussein por ser um país artificial, "criado" pela Grã-Bretanha, que juntou três províncias autônomas e antagônicas. A fragmenta- ção do país é de fato um prognóstico possível, especialmente quando se analisa a questão apenas com um olho no passado recente. Mas, quando nos voltamos para o passado remoto e para o presente, a história pode ser outra.

Desde o século XV até a Primeira Grande Guerra, todo o Oriente Médio estava sob o domí- nio do Império Turco Otomano, que em seus melhores dias estendera-se do norte da África às portas de Viena. As cidades e regiões que hoje formam os diversos países árabes eram províncias autônomas desse império, mas com governantes indicados pelo sultão turco, e sua geografia guardava pouca semelhança com o mapa político atual: a noção de país, tal como entendemos hoje, não existia ali. A dominação turca nunca foi aceita pacificamente pelos povos da região e um certo nacionalismo árabe desde logo se formou, acirrando-se até atingir seu ápice no fim do século XIX. Durante a Primeira Grande Guerra, os turcos se aliaram aos alemães e, claro, os líderes árabes, em troca de promessas de autonomia, acabaram por apoiar os britânicos, depois de um início vacilante. Foi o que ficou conhecida como a "Revolta Árabe", em que teve papel fundamental T. E. Lawrence, oficial inglês e escritor, conhecido como Lawrence da Arábia. Com a derrota dos alemães, o Império Turco desmoronouse. Mas a prometida autonomia demorou a chegar. As razões para isso são as mesmas que ainda hoje são ouvidas de alguns analistas: os árabes são atrasados e estão longe de um nível satisfatório de civilização. E foram expressas no artigo 22 do Pacto da Liga das Nações de 1919, que criava o sistema de mandatos:

"Os princípios seguintes aplicamse às colônias e territórios que, em conseqüência da guerra, cessaram de estar sob a soberania dos Estados que precedentemente os governavam e são habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si pró- prios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada de civilização, e convém incorporar no presente Pacto garantias para o cumprimento dessa missão. "O melhor método de realizar praticamente esse princípio é confiar a tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, de sua experiência ou de sua posição geográfica, estão em situação de bem assumir essa responsabilidade e que consistam em aceitá-la: elas exerceriam a tutela na qualidade de mandatários e em nome da Liga das Nações".

E, por mandato da Liga, França e Grã-Bretanha receberam o Oriente Médio como área a ser "supervisionada" até que a independência pudesse ser "concedida" àqueles povos. Aos chefes árabes, a Grã-Bretanha jurou torná-los os governantes de suas na- ções. O problema começava aí: que nações? Era preciso inventá-las.

A região de Hejaz, por exemplo, incluía as cidades santas muçulmanas de Meca e Medina, e, ainda nos tempos do Império Turco, era governada por Hussein Ibn Ali, o então patriarca do clã Hashemita, que se dizia descendente direto do Profeta Maomé (de fato, o Profeta era um hashemita da tribo dos Quraish, mas a alegação de que a família de Hussein descendia diretamente de Hashim, bisavô do profeta, não pode ser obviamente provada). Hussein Ibn Ali liderou a Revolta Árabe, proclamou-se rei de Hejaz e de todos os árabes (seu propósito era unificá-los numa só nação) e, como recompensa, ao fim da guerra, os britânicos reconheceram sua legitimidade e concordaram com a criação do Reino Hashemita de Hejaz. Não bastasse isso, os britânicos transformaram em governantes dois dos filhos de Hussein, que participaram ativamente da Revolta Árabe: Faisal Ibn Hussein tornou-se rei da Síria e o irmão dele, Abdullah Ibn Hussein, tornou-se emir da Transjordânia, que viria a ser a atual Jordânia. Mas o que era a Transjordânia?

Até 1921, nunca um território tinha sido chamado por este nome. Durante o Império Romano, aquela região era conhecida como Província Judéia, mas, no ano 132, em represália às revoltas judaicas que não paravam de eclodir mesmo após a diáspora, o imperador Adriano mudou o nome da área para Província Síria-Palestina, logo encurtado apenas para Palestina. Ao fim das Cruzadas, a região deixou de ser chamada oficialmente de Palestina, embora os habitantes locais usassem o nome informalmente. Durante os quatrocentos anos de domínio otomano, a região era ligada à Província de Damasco e governada de Istambul sem que houvesse unidade política entre seus habitantes: os que moravam na margem ocidental do Rio Jordão guardavam lealdade às cidades e aos portos da costa do Mediterrâneo; no norte, a associação era com a Síria; e, no sul, eram leais aos chefes locais da Península Arábica.

O nome Palestina só voltou oficialmente com a criação do Mandato Britânico da Palestina, em 1920, que englobava o que hoje são Jordânia, Israel e parte da Síria. Com a crescente migração de judeus para a região, irromperam os conflitos entre estes e os árabes, numa onda de protestos. Em 1921, Winston Churchill, como secretário de Estado britânico para as colônias, decidiu dividir o mandato em duas partes, criando, em 76% da área, o novo mandato da Transjordânia, toda a margem leste do Rio Jordão ("trans" quer dizer "além" e contrapõe-se a "cis", que quer dizer "aquém": portanto, Transjordânia quer dizer "além do Rio Jordão" e Cisjordânia, "aquém do Rio Jordão"). Estava criado um novo país, com um governante de fora, da Ará- bia (não palestino, portanto), o já mencionado Abdullah Ibn Hussein. Família de sorte: um pai, Hussein, dois irmãos, Faisal e Abdullah, e três reinos (reinos sim, mas não independentes, sob a supervisão "civilizadora" da Grã-Bretanha).

Nem tudo era perfeito, porém. A França reclamou a Síria como mandato seu (e de fato era, assim como o Líbano) e depôs Faisal do trono sírio. Mas não faltou criatividade à Grã- Bretanha, que deslocou Faisal para um novo posto, como rei de uma nova área. A região era conhecida desde a Antiguidade pelo nome grego de Mesopotâmia ("terra entre dois rios", no caso, o Tigre e o Eufrates). Foi o berço da civilização, onde os sumérios inventaram a escrita e onde o mundo se encantou com os Jardins Suspensos da Babilônia. No sé- culo VIII, conquistada pelos árabes, que a islamizaram, foi o centro do Império Árabe até o século XIX, com a então recém-construída Bagdá como capital. Ali, a Grã-Bretanha juntou os curdos do norte (em torno da cidade de Mossul), os sunitas ao centro (em torno de Bagdá) e os xiitas ao sul (em torno da cidade de Basra), pôs tudo no mesmo saco, batizou de Iraque, e pôs Faisal como novo rei (na verdade, uma eleição, muito parecida com a que Saddam Hussein costuma disputar, foi levada a efeito e Faisal foi referendado por 96% da população). Assim, a Grã-Bretanha, que tinha havia pouco perdido um reino hashemita, criou outro, para mantê-los em três.

Apesar das aparências, no entanto, o Iraque era um país de laborató- rio talvez em menor grau que a Jordânia. As três regiões de fato nunca tinham formado antes na História uma unidade política, mas viveram sempre, desde a fundação de Bagdá, numa mesma área de influência. Até mesmo o nome Iraque, que em árabe parece querer ser o correspondente à Mesopotâmia, pois significa "a margem fértil de um rio", sempre batizou, ao menos geograficamente, aquela região. Já no tempo do segundo califa, foram criadas cinco macroregiões, e o Iraque era a maior delas, abrangendo grande parte do que é hoje o Irã. Aliás, essa questão de nome é sempre muito curiosa: a Pérsia, sempre chamada assim, mudou de nome, por decreto, em 1935, quando Reza Khan Pahlavi rebatizou-a de Irã, que quer dizer "terra dos arianos". Alguns historiadores dizem que a medida visou a agradar a Hitler, mas o fato é que os habitantes locais sempre se chamaram assim, numa referência ao fato de que os primeiros colonizadores da região foram mesmo os arianos, que formaram a Média e a Pérsia, dois reinos, que só foram unificados na Pérsia em 539 a.C. por Ciro.

Mas voltemos ao Iraque. Não só o nome é antigo, como também o país está longe de ser um caldeirão de etnias, como têm dito alguns analistas, que repetem a todo instante que o país se divide entre curdos, sunitas e xiitas. Ocorre que os curdos são de fato um povo, com língua e costumes próprios, mas são muçulmanos e sunitas. Já os sunitas, do centro, e os xiitas, do sul, são todos árabes, embora pertençam aos ramos diferentes em que o islamismo se dividiu desde o seu surgimento. Na verdade, criado o Reino Hashemita do Iraque, com um sunita como rei, partiu justamente do sul, de Basra, dos xiitas, a maior pressão para que o país, unido, conseguisse a independência em 1932. Mantendo um sunita como rei (a monarquia só duraria até 1958, quando foi literalmente dizimada por um golpe militar, o primeiro de uma série, que acabou levando Saddam Hussein, um sunita, ao poder). Não faz sentido, portanto, falar num Iraque com três etnias. Os analistas devem escolher entre dividi-lo em duas etnias (árabes e curdos) ou em dois grupos de fiéis de uma mesma religião (xiitas e sunitas).

De qualquer forma, é muito duvidoso que os Estados Unidos apóiem a criação de um país curdo ou de um país xiita. Do total de curdos, 26% estão no Iraque, 34% na Turquia, 6% na Síria e 6% no Irã. Nenhum desses paí- ses veria com bons olhos um Curdistão independente e rico (há grandes reservas de petróleo em Mossul): em breve, o novo país estaria reivindicando a anexação das áreas curdas vizinhas, o que seria chamar por uma nova guerra. Também faz pouco sentido que se apóie a divisão do país entre sunitas e xiitas, mesmo sendo os xiitas maioria. Simplesmente porque a principal cidade xiita, Basra, fica ao sul, e é onde está a maior parte do petróleo.

Um Estado xiita na região seria um fator de desequilíbrio, seria um pólo de atração e um estímulo para os xiitas da Arábia Saudita, uma minoria sempre oprimida pelo ultra-ortodoxo islamismo vigente. E onde está o petróleo saudita? Em grande parte, no território habitado pelos xiitas. Nem os Estados Unidos nem a Arábia Saudita gostariam de uma confusão como essa.

Arábia Saudita? Mas que país é esse? Meca e Medina não faziam parte do Reino Hashemita de Hejaz? Pois é, faziam, e esta é a última história sobre a criação de países que conto aqui. A região da atual Ará- bia Saudita era povoada por várias províncias autônomas, com rixas seculares entre si. Abdel Aziz Ibn Saud, depois de ter sua família derrubada do poder na região de Najd (onde está a cidade de Riad), passou dez anos no exílio no Kuwait. Quando voltou, retomou o poder e, em 1915, assinou um tratado com a Grã-Bretanha para se tornar líder de um protetorado britânico em Najd. Mas suas pretensões não pararam ali. Aos poucos, porta-voz de um islamismo ultraconservador, foi guerreando e tomando para si cidades vizinhas. Em 1924, finalmente conquistou para si o Reino Hashemita de Hejaz, em poder dos hashemitas, que teriam de se contentar com apenas dois reinos: o da Transjordânia e o do Iraque. Mais tarde, Saud conseguiu anexar também a província de Dhahran, lar dos xiitas, onde se encontram as principais jazidas de petróleo. Era o início do que conhecemos hoje por Arábia Saudita.

De qualquer forma, apesar do que se pode chamar de artificialismo na formação moderna desses países, já lá se vão 80 anos ou mais desde a sua criação. Como a taxa de natalidade é grande (e a expectativa de vida não é boa), com certeza, seja de que província for, um jovem da Arábia Saudita se sente um saudita em primeiro lugar, assim como um jovem de Basra ou Bagdá se dirá iraquiano com orgulho. O mesmo orgulho que fazia com que o motorista jordaniano, mesmo um palestino, abrisse um sorriso para dizer: "Como é linda a minha Jordânia."

Em vez de vaticinar o fim do mapa político atual do Oriente Médio, é preciso torcer para que ele se consolide. E as linhas que faltam para que esse mapa fique pronto, todos nós conhecemos. São aquelas que trarão paz a palestinos e israelenses