Jesus Muçulmano", O Globo, 26/12/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Jesus Muçulmano", O Globo, 26/12/2006

Na recente visita que o Papa Bento XVI fez à Turquia, quase todos os jornais do mundo estamparam uma foto em que uma muçulmana, em protesto, levanta um cartaz onde se lê: "Jesus não é o filho de Deus. Ele é um profeta do Islã". Imagino que muitos de nós brasileiros tenhamos estranhado e se interrogado sobre qual o papel de Jesus no islamismo. O Natal foi ontem, uma boa ocasião para entendermos melhor a questão.

Se apenas levássemos em conta a maneira pela qual o Alcorão se refere a Jesus (Issa, em árabe), já teríamos uma idéia da reverência com que é tratado: "Jesus, o filho de Maria", "o Messias", "a Palavra de Deus", "a Palavra da Verdade", "um Espírito de Deus", "o Mensageiro de Deus", "o Servo de Deus", "o Profeta de Deus", "Ilustre nesse mundo e no próximo". Tirando Maomé, ninguém mais no Alcorão inspira tanto respeito. E por quê?

Porque o Alcorão reconhece a natureza miraculosa de Jesus: Ele nasceu de uma virgem, por intervenção direta do Divino e, por isso, é um milagre de Deus. Na sura XIX, Deus conta que o anjo Gabriel, transformado na figura perfeita de um homem, foi ao encontro de Maria dizendo-se um mensageiro de Deus e lhe anunciou: ela daria à luz um filho imaculado. Maria rebateu: "Como posso ter um filho se nenhum homem me tocou e se jamais deixei de ser casta?" O anjo lhe respondeu: "Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para os homens, e será uma prova de Nossa misericórdia. E foi uma ordem inexorável."

De acordo com o Alcorão, quando Maria voltou ao seu povo, depois do parto, recriminaram-na porque pensaram que ela deixara de ser casta. Maria pediu então que interrogassem o bebê, para espanto de todos: "Como falaremos a uma criança que ainda está no berço?" Jesus então lhes disse: "Sou o servo de Deus, o Qual me concedeu o Livro e me designou como profeta. Fezme abençoado, onde quer que eu esteja, e me encomendou a oração e (a paga do) zakat enquanto eu viver. E me fez piedoso para com a minha mãe, não permitindo que eu seja arrogante ou rebelde. A paz está comigo, desde o dia em que nasci; estará comigo no dia em que eu morrer, bem como no dia em que eu for ressuscitado."

Apesar disso, para os muçulmanos Jesus não é filho de Deus, e a explicação que Deus dá no Alcorão é esta: "É inadmissível que Deus tenha tido um filho. Glorificado seja! Quando decide uma coisa, basta-lhe dizer: Seja, e é." Em outras palavras, Deus quis que Maria tivesse um filho sem a intervenção do homem, e assim ocorreu. O versí- culo 59 da sura terceira explica: "O exemplo de Jesus, ante Deus, é idêntico ao de Adão, que Ele criou do pó, então lhe disse: Seja! e foi." Nem por isso dizem que Adão é filho de Deus, retrucam os muçulmanos.

O Alcorão conta que Jesus fez muitos milagres: deu vida a um pássaro de barro, fez um cego enxergar, curou um leproso, ressuscitou um morto, uma lista parecida com a que os cristãos conhecem. A missão de Jesus, segundo o Alcorão, foi trazer aos homens os Evangelhos e confirmar a lei Mosaica que o precedeu. Aqui é preciso explicar que o islamismo aceita como divinamente revelados a Torá, livro sagrado dos judeus, e o Novo Testamento, livro sagrado dos cristãos, mas acredita que eles, por não terem sido corretamente preservados, foram corrompidos por versões adulteradas, postas no papel muito tempo depois: Deus, com o Alcorão, pretendeu fazer uma correção de rumos, apontando, pela última vez, para a Verdade antes revelada. É por isso que todos os personagens e profetas da Torá (o Antigo Testamento para os cristãos) e dos Evangelhos são também comuns ao islamismo.

Isso nos leva a este ponto: o cartaz da muçulmana turca errava ao dar a entender que Jesus, "um profeta do Islã", tem o mesmo status que os demais. Na segunda sura, versículo 253, está dito: "Desses mensageiros, preferimos uns a outros. Dentre eles, há aquele a quem Deus falou; e a algum deles Ele elevou escalões, e concedemos a Jesus, filho de Maria, as evidências, e amparamo-lo com o Espírito Santo." Diz-se no islamismo que Jesus, ao nascer, diferentemente de todos os outros homens, não foi tocado pelo demônio, o que fez dele um homem sem pecado e sem tendência ao pecado, uma qualidade que ele dividiria apenas com a sua mãe, Maria.

Jesus é tão especial que o Islã não aceita a sua crucificação: tudo não teria passado de uma ilusão: Jesus subiu aos céus em seu corpo físico. Seus algozes viram uma crucificação que nunca houve. Jesus, portanto, não morreu, mais um milagre que Deus lhe concedeu. No final dos tempos, Jesus voltará. Isso não está dito claramente no Alcorão, mas está bem assentado pela Suna, os atos e ditos do Profeta Maomé, registrados por uma longa cadeia de testemunhos. Jesus voltará por uma das torres da Mesquita de Damasco, que o Papa João Paulo II visitou. Em seu retorno, Jesus derrotará o Anticristo que, à época, estará levando horror ao mundo. Soa familiar? A diferença é que para os muçulmanos Jesus governará a Terra como um rei justo por 45 anos, período durante o qual o leão conviverá com a gazela e as crianças poderão, sem perigo, brincar com serpentes. Ele se casará, terá filhos e finalmente morrerá, como todos os homens. Será enterrado na Mesquita de Medina, onde está a sepultura de Maomé. Ficará num túmulo que dizem estar hoje vazio, entre as covas de Abu Bacre, o primeiro califa, e Omar, o terceiro. A segunda vinda de Jesus será um dos sinais que precederão o Dia do Juízo Final, quando os mortos ressuscitarão e, como os vivos, serão julgados, merecendo a vida eterna ou a eterna danação.

Tendo pai, avós paternos e avô materno muçulmanos, mãe e avó materna cristãs e mulher judia, aprendi a ver semelhanças entre as três religiões monoteístas. Que haja tantas divergências entre elas, e tanta dor e divisão, não é nada mais senão o sinal de que somos humanos, muito humanos.