Ainda os livros didáticos, um
problema mais grave do que
eu imaginava. Para 2008, o
MEC me informa que já
comprou mais de um milhão de
exemplares do livro de História "Projeto Araribá, História, Ensino Fundamental, 8", a ser distribuído na rede
pública a partir de janeiro. Para ser
exato, 1.185.670 exemplares, a um
custo de R$ 5.631.932,50. É agora o
campeão de vendas.
Sem dúvida, o livro tem um pouco
mais de compostura que o "Nova História Crítica", que analisei há 15 dias,
mas, em essência, apresenta os mesmos defeitos e um novo, gravíssimo:
faz propaganda político-eleitoral do
PT. Na unidade 3, "A Primeira Guerra
Mundial e a Revolução Russa", o livro
diz o seguinte, logo na abertura, sob
o título "Um sonho que mudou a História": "Em 1o
-
de janeiro de 2003, o
governo federal apresentou o programa Fome Zero. Segundo dados do IBGE, 54 milhões de brasileiros vivem
em estado de pobreza. Em nenhum
país do planeta existem tantos pobres vivendo entre pessoas tão ricas
(...). Por que, apesar de tantos avanços tecnológicos, pessoas continuam
morrendo de fome? É possível mudar
essa situação? Os revolucionários
russos de 1917 acreditavam que sim.
Seguros de que o capitalismo era o
responsável pela pobreza, eles fizeram a primeira revolução socialista
da História. Depois disso, o mundo
nunca mais seria o mesmo. Hoje, passado quase um século, o capitalismo
retornou à Rússia, e a União Soviética, (...) não existe mais. Valeu a pena?
É difícil responder. Mas como dizia
um membro daquela geração de revolucionários, é preciso acreditar
nos sonhos."
Entenderam a sutileza? Os alunos
são levados a acreditar que não há
país no mundo com mais pobres do
que o nosso (os autores se esqueceram da Índia, para citar apenas um?).
E que o Fome Zero seria o sonho de
1917 revivido.
Por uma questão de espaço, publico apenas na internet uma análise
completa sobre como o livro trata o
socialismo e o capitalismo, simpatia
extrema pelo primeiro, crítica aguda
contra o segundo (o leitor encontra
essa análise em www.oglobo.com.br/opinião). Aqui vou me
concentrar na novidade do livro, naquilo que mais espanta:
a propaganda político-eleitoral.
Depois de relatar o
sucesso do Plano Real
no governo Itamar, o livro explica assim a vitória de FH sobre Lula
nas eleições de 1994:
"Uma habilidosa propaganda política transformou o candidato do governo, Fernando Henrique, no pai do Plano
Real." Sobre os resultados do primeiro governo FH, o livro
contraria tudo o que os especialistas
dizem sobre os efeitos imediatos do
Plano Real: "A inflação foi controlada, mas a um preço muito elevado. O
desemprego cresceu, principalmente
na indústria, elevando a miséria, a
concentração de renda e a violência
no país." Herança maldita é pouco.
Depois de contar como o governo
foi obrigado a desvalorizar o real, o
livro diz que o segundo mandato de
FH trouxe duas conquistas no campo
social: ampliou as matrículas no ensino fundamental e reduziu a mortalidade infantil. Mas o capítulo termina assim: "O PT chegou ao poder
com a responsabilidade de vencer
um enorme desafio: manter a inflação sob controle e combater a desigualdade social no Brasil, onde 54 milhões de pessoas vivem em situação
de pobreza." Como os autores disseram no início, o sonho não acabou.
O livro termina com oito páginas
sobre a fome no mundo e no Brasil.
As causas da fome, apontadas pelo livro, são as dificuldades de acesso à
terra, o aumento do desemprego e a
divisão desigual da renda. Depois de
repetir que "o nosso país tem fome",
o livro "esclarece": "O combate à fome é o principal objetivo do governo
Lula, que tomou posse
em janeiro de 2003. Para isso, o governo lan-
çou o Programa Fome
Zero. A implantação do
programa tem como referência o Projeto Fome
Zero — uma proposta
de política de segurança alimentar para o Brasil, um documento que
reúne propostas elaboradas pelo Partido dos
Trabalhadores em
2001. Leia agora parte
desse documento."
E as crianças são então expostas a
52 linhas do documento de propaganda partidária elaborado em 2001
pelo Instituto da Cidadania, do PT. E
a nenhum outro.
O Fome Zero, que não conseguiu
sair do papel, vira História.
Tudo isso distribuído gratuitamente pelo governo federal a mais de um
milhão de alunos. Isso é possível? Isso é republicano?
Não acredito que o presidente Lula
aceite que propaganda política de um
único partido seja distribuída com o
uso de dinheiro público como se fosse
aula de História. Não acho também
que o MEC concorde com isso.
Fica aqui o alerta.
Três detalhes.
O livro, deliberadamente, confunde pobreza com fome. A OMS admite
até 5% de pessoas magras em qualquer população (os geneticamente
magros e, não, os emagrecidos pela
falta de alimento). O Brasil tem 4% de
magros e, em pouquíssimas áreas,
esse percentual chega a 7%; a Índia
tem 50%. A fome no nosso país é, portanto, um fenômeno localizado, na
casa das centenas de milhares de
pessoas, nunca na casa dos milhões.
O livro, que se bate contra a globalização e o neoliberalismo, foi impresso na China. Usando uma linguagem que poderia ser a dos autores,
"roubando empregos brasileiros".
E, por último, para que o leitor tenha
certeza da péssima qualidade do projeto, sugiro uma visita à página 83 do
livro de geografia para a oitava série,
da mesma coleção (1.087.059 exemplares, ao custo de R$ 4.859.153,73). Lá,
num texto sobre o Islã, está escrito que
a corrente sunita é a mais moderada e
que "a xiita ou fundamentalismo islâmico é a mais radical". Sim, eles acham
que o xiismo e o fundamentalismo são
sinônimos. Sim, eles ignoram que a AlQaeda, a manifestação mais brutal do
fundamentalismo, é sunita. No mesmo
texto, está escrito também que a Arábia Saudita, o berço do sunismo radical, é... xiita.
Pobres de nossas crianças.