"Lula e a fome", O Globo, 30/11/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Lula e a fome", O Globo, 30/11/2004

"Entreatos", filme de João Salles sobre os bastidores da campanha de Lula, pode dar ao espectador a impressão de que capta os flagrantes de Lula como se a câmera fosse invisível. O cineasta já reconheceu que não é isso: como a câmera é ostensiva, o então candidato mede o que fala, por mais improvisado que pareça o discurso. É, assim, ainda mais revelador um dos trechos do filme. Lula conversa sobre as estatísticas no Brasil com Gilberto Carvalho, seu assessor de campanha e, hoje, secretário particular. Lula diz: "Eu lembro que fui a Paris e falei: 'O Brasil tem 25 milhões de crianças de rua'." Voltando-se para Gilberto, demonstra incredulidade: "Isso é uma Argentina! Não existe isso!" Ele continua: "Frei Betto um dia foi na igreja e disse que cinco milhões de pessoas morrem de aborto por ano. Não é possível, rapaz!" E pergunta: "Quantas pessoas passam fome neste país, Gilberto? Eu acho o número de 53 milhões tão absurdo!" Lula conclui, conformado: "Mas os números são do IBGE."

Taí o problema! Os números não são do IBGE: censo e PNAD não dizem quem passa fome. O que o IBGE registra é a renda dos brasileiros. Com base nela, pesquisadores tentam inferir quantos brasileiros são famintos. O resultado dependerá do método utilizado, e há muitos, como mostrou O GLOBO, domingo. Há quem se fixe apenas num corte de renda, estabelecendo meio salário mínimo de renda per capita como limite da pobreza, por exemplo. Há pesquisadores que se baseiam no nú- mero de calorias que consideram necessárias para manter um indivíduo vivo e o preço da cesta de alimentos capaz de gerar essas calorias. A necessidade calórica pode ser de 2.100, segundo a FAO, 2.288, segundo a OMS ou 1.800 segundo muitos especialistas. A determinação da cesta não é simples: ela pode ser regional ou nacional, pode conter os alimentos mais baratos ou aqueles que a cultura local gosta de consumir.

Isso explica a infinidade de números. Os indigentes seriam 47 milhões, para um pesquisador da FGV; 25 milhões, para um pesquisador do Ipea; ou 17 milhões, para o Banco Mundial. Os pobres seriam 58 milhões, segundo o pesquisador do Ipea, 61 milhões segundo outra pesquisadora da FGV ou 46 milhões segundo o Banco Mundial. Todos podem estar errados. O governo adotou o critério de renda, R$100, o equivalente a meio salário mínimo até abril de 2003. Com esta renda, havia 53 milhões de pessoas, o tal número a que se referia Lula, já defasado. Esta passou a ser a meta ambiciosa do programa para pôr fim à fome.

Tão ambiciosa que parece inadministrável: o Bolsa Família continua foco de más notícias. Semana passada, a Controladoria Geral da União divulgou as auditorias nas três cidades retratadas em reportagem do "Fantástico", da TV Globo: Cáceres, Piraquara e Pedreiras. Lula deveria ler as 65 páginas dos três relatórios. Em Cáceres, os auditores analisaram um grupo de 125 beneficiários de programas sociais. Destes, apenas 52% foram encontrados, 20% não tiveram suas casas localizadas, 16% não estavam no domicílio para ser entrevistados e 12% estavam irregulares (ou eram inelegíveis ou estavam inscritos em mais de um programa). Em Piraquara, dos 102 pesquisados, apenas 56% estavam regulares, 25% não foram localizados e 19% estavam irregulares. Em Pedreira, o auditor não informou o número de famílias visitadas. Mas um dado diz muito: de 123 pessoas que retiraram os cartões de pagamento da agência da Caixa, o gerente só tinha os termos de responsabilidade assinados por onze delas.

No relatório de Cáceres, para citar apenas um, critica-se a forma de cadastramento. Um dos maiores objetivos do Bolsa Família é levar as crianças às salas de aula, mas o cadastramento foi feito nas escolas entre os alunos já matriculados. "Isso significou que aquelas famílias em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade, cujos filhos não estavam na escola, deixaram de ser cadastradas. De acordo com os dados de 2000, cerca de 7% das crianças entre 7 e 15 anos não estudavam", diz o auditor. Quanto ao número dos que recebem sem merecer, o auditor culpa a falta de verificação in loco do que dizem os beneficiários: "O cadastro é feito com base apenas em declarações do beneficiário. Esse procedimento fragiliza a consistência dos dados cadastrais."

Todo o problema reside em confundir pobreza com fome. Talvez fosse a hora de Lula confiar menos nos economistas e mais nos nutricionistas para determinar quem é faminto .

Em vez de procurar definir mais uma linha de pobreza, ou qual a mais próxima da realidade, o governo deveria esperar os resultados do capítulo de nutrição da Pesquisa de Or- çamento Familiar, que o IBGE está prestes a divulgar. Será a primeira pesquisa que revelará realmente quantos famintos o país tem. Financiado pelo governo Lula, o IBGE mediu peso e altura de uma parcela estatisticamente representativa de todos os brasileiros. Assim, saberemos em breve a população de emagrecidos, aqueles que realmente passam fome, um número que alguns nutricionistas estimam, no máximo, entre dez e quinze milhões.

O presidente devia seguir a intuição do candidato, ter a coragem de assumir de público que o Brasil não tem 53 milhões de famintos e interromper o cadastramento para reavaliação até que saiam os números da nova pesquisa. Se Lula fizer isso, em vez de estar gastando quase R$ 9 bi ao ano ao fim de seu governo para beneficiar 53 milhões de brasileiros supostamente famintos, gastaria no máximo R$ 2,5 bi com os que realmente passam fome. Com o troco, poderia dobrar a verba que o MEC tem para seus projetos. Seria um legado inestimável de Lula: ter dado um passo essencial para acabar com a fome de comida e a fome de saber.