"Manter as regras", O Globo, 26/07/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Manter as regras", O Globo, 26/07/2005

A lguns leitores se espantaram quando disse aqui que em todos os países há inconformidade com o sistema eleitoral. E, no entanto, isso é verdade. Mesmo nas democracias mais consolidadas, há movimentos buscando reformas. A sorte deles é que esses movimentos não vão adiante. Porque qualquer novo sistema produzirá novas críticas. Mais importante do que reformar é garantir que os eleitores conheçam bem o sistema e, assim, saibam como fazer para levar ao poder os seus preferidos. Manutenção das regras, eis a chave de um bom sistema.

O que aqui chamamos de sistema distrital, adotado nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, tem sofrido toda sorte de críticas. Nesse sistema, o país, o estado ou a cidade são divididos em distritos. Para facilitar, imagine um distrito que eleja apenas um deputado. E que cinco candidatos, de partidos diferentes, concorram ao posto. O mais votado será o único eleito. No meu exemplo, suponha que, dos cinco candidatos, três consigam 20% dos votos, um, 17% e o terceiro, o vencedor, 23%. Com apenas 23% dos votos, ele representará todo o distrito. Na prática, os que não votaram nele ficarão sem representante. Imagine agora que todos os distritos do país tenham tido comportamento igual. Isso significará que, com apenas 23% dos votos, um partido terá 100% das cadeiras do Parlamento.

Evidentemente, isso é um exemplo que dificilmente acontecerá na realidade. Mas, freqüentemente, o partido vencedor tem proporcionalmente menos votos populares do que lugares no parlamento. A vantagem desse sistema é que ele é mais propício a dar origem a maiorias sólidas. Os trabalhistas ingleses tiveram 37% dos votos populares, mas ficaram com 55,2% dos assentos no Parlamento. Os conservadores tiveram 33% dos votos populares, apenas quatro pontos a menos do que os trabalhistas, mas ficaram com 157 cadeiras a menos. É democrático? É, porque os trabalhistas venceram nos distritos. Mas parte da sociedade ficou sem representação.

Há países que adotam o sistema de dois turnos: os dois mais votados no distrito voltam a disputar. Na França, o segundo turno é disputado por todos os candidatos que obtiverem pelo menos 12,5% dos votos, ganhando quem obtiver a maioria simples. Esse modelo, porém, agrava a sub-representação: um partido minoritário que tenha conseguido a maioria simples em um único distrito pode ficar sem essa vaga no segundo turno se seus adversários se unirem contra ele.

Isso é parcialmente resolvido nos sistemas proporcionais. No exemplo que dei antes, os cinco partidos elegeriam parlamentares: três partidos teriam 20% do Congresso, um teria 17% e o terceiro, 23%. Nos sistemas de listas fechadas, o eleitor vota no partido e nem toma conhecimento de quem são os candidatos. Quem dirá sempre quem são aqueles que serão os representantes do povo serão as burocracias partidárias. Se um partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os eleitos serão os 12 primeiros de uma lista definida, antes, pelo próprio partido. É democrático? É, porque os eleitores delegaram isso aos partidos.

Mas eu não me sentiria confortá- vel sabendo que meia dúzia de pessoas escolheu meus representantes. Isso não acontece no sistema de listas abertas, em que o eleitor escolhe a ordem dos eleitos. Os mais votados do partido são aqueles que serão os escolhidos. Se o partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os 12 mais votados serão os eleitos. Dizem que só no Brasil e na Finlândia há sistema proporcional com listas abertas. É falso. Vários países da Europa, como Holanda e Suécia, têm listas abertas. São mais restritivas, porém. Na Suécia, o eleitor vota no partido, indicando o candidato de sua preferência. Se o partido conquistar o direito de eleger quatro deputados, os eleitos serão os mais votados desde que tenham obtido, no mínimo, 8% dos votos do partido. Se o quarto mais votado tiver obtido 6%, ele deixará de ser eleito e em seu lugar entrará aquele que o partido tiver posto na frente na lista feita antes da eleição. Mesmo que esse candidato tenha obtido menos que 6% dos votos. Neste sistema, o partido guarda boa influência.

Aqui no Brasil, não é assim. O eleitor tanto pode votar na legenda como no candidato. Os votos no partido ajudarão a dizer quantos deputados o partido elegerá, mas os eleitos serão sempre os mais votados. Vejamos o caso do Enéas. Ele teve um milhão e oitocentos mil votos e, com isso, o Prona ganhou o direito de eleger Enéas e mais cinco deputados. Quatro deles, no entanto, tiveram, cada um, menos do que mil votos. Isso é um problema? Não sei. Porque pelo sistema de lista fechada os parlamentares não têm voto algum. Portanto, nisso, o nosso sistema é parecido com o de listas fechadas, que querem adotar. Quem fica insatisfeito com essa peculiaridade ficará ainda mais com o sistema que estão propondo .

A grande desvantagem de sistemas proporcionais, de lista aberta ou fechada, é que eles respeitam as diversas correntes de opinião mas, por isso mesmo, fragmentam muito o espectro político, tornando difícil o advento de maiorias de um partido só. Como tive oportunidade de dizer, vejo isso como vantagem: é o antídoto para salvadores da pátria, o governo terá de refletir sempre um arco de pensamento necessariamente mais amplo.

Para contornar esses problemas, algumas nações adotaram o chamado voto misto: parte dos deputados é eleita pelo voto distrital e parte pelo voto proporcional. Esse sistema, porém, guarda os defeitos dos dois outros e nenhuma das suas virtudes: as maiorias são mais difíceis de serem alcançadas do que no distrital puro e as correntes de opinião continuam sub-representadas. Eu poderia relacionar aqui outros sistemas eleitorais para mostrar que todos têm defeito, mas creio que estes já são suficientes.

Nosso sistema precisa criar cláusulas de barreira e fidelidade partidária. Com isso, temos grandes chances de resolver o problema de maiorias estáveis. Acordos feitos entre os partidos terão de ser respeitados pelos deputados. Mas mais importante do que mudar as regras é fortalecê-las. Se nós tivermos instituições fortes, moral elevada, ética, uma polícia vigilante, um Judiciário zeloso, roubar, aceitar mensalão ou usar cargo público para roubar serão exceções. Não adianta mudar as regras. É preciso que elas sejam cumpridas.