"Milagre de Padre Cícero", O Globo, 05/09/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Milagre de Padre Cícero", O Globo, 05/09/2006

Em 1989, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva teve uma experiência traumática em Juazeiro do Norte, Ceará, centro de romaria dos devotos de Padre Cícero: seu carro foi apedrejado, aos gritos de "comunista". Foi a única cidade em que algo assim aconteceu. Semana passada, estive a trabalho em Juazeiro do Norte e em Petrolina, Pernambuco, e posso testemunhar: hoje, é Lula na terra e o Padre Cícero no céu. O que mudou nesses 17 anos?

Meus propósitos eram outros, mas o tema "Bolsa Família" estava ali em toda parte, e três histórias me caíram no colo.

Um motorista de Petrolina se disse mecânico formado, empregado como tal, mas naqueles dias fazendo um bico, ao dirigir para a empresa em que trabalhava. Era o menos afortunado de quatro irmãos: uma irmã era dentista, uma irmã, advogada, e um irmão, engenheiro. Todos empregados. A mãe dos quatro recebe o Bolsa Família e está feliz da vida.

Em Juazeiro, fui atendido por outro motorista, também fazendo um bico, porque trabalhava até pouco tempo como motorista de uma empresa de ônibus: foi demitido, mas já está encaminhado para começar em outra empresa. O pai dele tem 63 anos e é aposentado desde os 47, porque, também motorista de ônibus, pôde se aposentar com 25 anos de serviço. O irmão trabalha por conta própria, instalando e consertando antenas parabólicas. A mulher desse irmão trabalha em Petrolina na lavoura de frutas durante cinco meses do ano e, no restante do tempo, é revendedora de produtos de beleza. Ela está entre as beneficiárias do Bolsa Família. Também em Juazeiro, encontrei uma senhora que dirige uma van para romeiros. O carro pertence à mãe dela: "Eu só ganho comissão", explica, acrescentando que tira uns dois salários mínimos por mês. O marido dela é representante comercial de uma fábrica de produtos de alumínio e recebe um pouco menos: um salário mínimo e meio. O pai dele tem uma barraca na feira da cidade. A mãe recebe o Bolsa Família.

São todos pobres, mas estão longe do que deveria ser o público-alvo do Bolsa Família. Nos três relatos, as famílias não necessitam de ajuda do Estado: todas têm meios de compensar alguma necessidade de seus membros, se necessidade existir. Haverá quem diga que escrevo com base em apenas três testemunhos, mas não é fato. Os relatos corroboram o que já disse aqui com base na última PNAD. Levando em conta todos os que recebem o Bolsa Família, 37,6% tinham em 2004 renda per capita superior a R$ 100, o teto então exigido pela lei. A imprensa mostra isso: em qualquer cidade é muito fácil encontrar beneficiários do Bolsa Família fora do público-alvo.

O presidente Lula disse numa entrevista que erros, num programa com a dimensão do Bolsa Família, são naturais, e muitos pesquisadores concordam. Eu acho o índice muito elevado. O presidente diz também que o importante é matar a fome dos brasileiros. Mas programa não mata a fome de ninguém, porque a fome no Brasil já deixou de ser um problema. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar, do IBGE, que mediu e pesou os brasileiros, apenas 4% de nós estão emagrecidos, índice considerado normal pela OMS, porque até 5% dos indivíduos de qualquer grupo são geneticamente magros. Em apenas algumas poucas regiões, o índice é próximo de 7%, o que nos leva a contar os famintos aos milhares, nunca aos milhões. Para comparar, no Haiti este número é de 20%, na Etiópia, 40%, e na Índia, 50%. Nossos números permitiriam que o dinheiro do Bolsa Família fosse dramaticamente reduzido, para atender apenas àqueles que de fato necessitam. O resto seria aplicado em educação, único instrumento que redime as pessoas da pobreza.

Mas o governo insiste em manter a largueza do programa e se orgulha de, hoje, beneficiar 11,1 milhões de famílias. No Nordeste, 5,5 milhões de famílias são beneficiárias do programa, um número 49% maior do que no ano passado. 40% das famílias de Petrolina e 31,4% das famílias de Juazeiro recebem o dinheiro. O impacto eleitoral disso é evidente.

Se fôssemos um país amadurecido, o Bolsa Família seria percebido como uma política de Estado, criada por um governo, aperfeiçoada ou piorada (dependendo do ponto de vista) por outro e aprovada pela maioria dos congressistas. Algo como a vacinação obrigatória, a educação gratuita, as aposentadorias do INSS, o décimo terceiro salário, o auxílio-desemprego. Não seria jamais visto como um favor, uma bondade ou um presente deste ou daquele governante. Como está, será sempre possível levantar a suspeita, por mais leviana que seja, de que a concessão do benefício em dinheiro visa a uma recompensa eleitoral futura.

O certo é que a virada de Juazeiro não foi milagre.

PS: Em artigo sobre o meu livro "Não somos racistas", recentemente lançado, Nei Lopes atribuiu a mim, entre aspas, uma frase que eu não disse, acusou-me de chamar, "derrogatoriamente", os negros de pele mais clara de pardos, disse que empreendo uma "cruzada" contra as cotas e afirmou que volto ao passado obscurantista.

A frase "Os negros usam os pardos para engordar os números da miséria, mas depois se afastam dos benefícios" jamais foi dita por mim, e, aliás, não faz sentido: os negros se afastam? O que eu disse é que os pardos são contados para engrossar as estatísticas sobre os negros, mas, depois, são impedidos de se beneficiar das cotas, o que é uma realidade em muitas universidades, que exigem fotos para descartar os vestibulandos de pele mais clara.

Não sou eu que uso a expressão "pardos", mas o IBGE em suas estatísticas oficiais.

Um brasileiro de origem muçulmana muito dificilmente empreenderia cruzadas.

E, por fim, não apelo ao passado obscurantista. Quem embaralha a História para justificar políticas de preferência racial é ele.

Enfim, ou Nei Lopes não leu o meu livro ou deliberadamente decidiu distorcer minhas palavras. Quem ler o livro saberá de que lado está a verd a d e .