"Mudança de tom", O Globo, 18/11/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Mudança de tom", O Globo, 18/11/2008

A eleição de Obama teve muitos efeitos positivos, e aplaudo todos eles. Mas, para mim, o maior de todos foi fazer os racialistas brasileiros refletirem sobre o que propõem para a sociedade brasileira. Não houve recuos, infelizmente, mas o tom geral nas entrevistas que li, nos artigos publicados em jornais de todo o país e nos inúmeros emails de leitores que recebi foi aquele que se usa quando se está tentando se explicar, se justificar, se fazer entender, afastar de si possíveis mal-entendidos. Um avanço e tanto, num país em que os racialistas se achavam os donos de todas as virtudes e faziam recair sobre nós um mar de acusações infundadas, nós que queremos ver os homens ignorando-lhes a cor: diziam que queríamos a manutenção do status quo, que éramos contrá- rios à promoção dos negros, contrários a políticas afirmativas porque gostaríamos de manter privilé- gios, coisas horríveis assim. Pois quando Barack Obama fez o seu discurso da vitória e ignorou solenemente o fato de ser o primeiro presidente negro dos EUA, alguma coisa aconteceu no coração dos racialistas. Se a visão pós-racial de Barack Obama fosse apenas uma estratégia eleitoral, como muitos acreditavam, por que motivo então, depois de eleito, ele não celebrou o feito histórico? Afinal, seria algo que (quase) todos veriam como justo e natural. Ele não celebrou o fato porque sua visão pósracial não era estratégia eleitoral em primeiro lugar; era crença.

Crença no sonho de Martin Luther King de que todos nós sejamos julgados pelo nosso caráter e não pela nossa cor. Obama foi coerente com esse sonho, do início ao fim, agiu sempre, não como um negro americano que postula a Casa Branca, mas apenas como um americano. Coerência é isso. Como conseqüência, aqui, os muitos que viam na divisão de nossa nação entre negros e brancos a panacéia para superação das desigualdades foram surpreendidos em pleno vôo. Dão como modelo os EUA e, agora, surge lá um líder capaz de reunir multidões, com uma visão pós-"racial", que ignora "ra- ça"? Como é que pode?

Li muito do que se escreveu e se falou do assunto, e, como disse, gostei do tom, embora admita que nem de longe tenha havido recuos. A tônica geral era que a visão pósracial é a correta, mas, no Brasil, para se atingi-la, é preciso antes aprofundar as divisões. É, sem dú- vida, um contra-senso, mas só a admissão de que o sonho é um mundo onde cor não importa já é um grande avanço. Ponto para Obama.

Aqui e ali, porém, principalmente nas mensagens que recebi de leitores, algumas afirmações se baseavam em dados errados. Acho importante esclarecer esses pontos.

Muitos disseram que Obama só foi possível porque se beneficiou de políticas afirmativas com base em raça, políticas que eu condeno. Esse argumento é muito recorrente, aqui e lá fora. Todos agora já admitem que ele é a favor de políticas universalistas, mas muitos insistem em que ele foi um beneficiário de políticas de preferência racial. Não foi. Obama, publicamente, não faz menção a isso, talvez porque, se disser que não se beneficiou, possa parecer que vê com críticas aqueles que se beneficiaram, o que não é o caso. Maureen Dowd publicou em uma de suas colunas no "New York Times" que Obama sequer se disse negro quando se inscreveu para disputar uma vaga em Harvard. Nunca foi desmentida, e colegas de Obama na universidade disseram o mesmo mais tarde. Sobre políticas afirmativas, Obama disse, numa entrevista a uma emissora de televisão, que suas filhas Malia e Sasha, no futuro, não deveriam se beneficiar de políticas afirmativas, porque têm todas as chances na vida e porque têm dinheiro para arcar com os estudos. Ele acha mais justo, e mais lógico, que a ajuda vá para os pobres, mesmo que sejam brancos. Já aqui...

Outra afirmação muito freqüente é a de que Obama só foi possível lá porque a luta pelos direitos civis foi vitoriosa, o que é uma verdade cristalina. Mas a afirmação vem quase sempre acompanhada de outra: esta luta ainda está para ser travada aqui no Brasil. Não há nada mais absurdo. Desde a República, nunca houve segregação no Brasil entre brancos e negros, nunca. Nada sequer parecido com as leis Jim Crow, como ficou conhecida a legislação que impunha que brancos e negros tivessem lugares separados em espaços públicos, escolas e transportes (além de proibir os casamentos inter-"raciais"). Dizer que aqui ainda é necessário lutar pelos direitos civis dos negros é distorção ou desconhecimento do que sejam os direitos civis.

Há muito o que fazer no Brasil. Mas o bonde da História aponta para que não caiamos na tentação de dividir a nação em negros e brancos. O que devemos fazer é apostar numa visão pós-racial, que contemple o sonho de Martin Luther King. O caminho para superar as desigualdades são políticas de corte social, que tenham como objetivo a melhora da vida dos pobres sem levar em conta a cor de ninguém. Fazendo isso, nosso país necessariamente será mais justo, mais igualitário.