"Não somos racistas", O Globo, 09/12/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Não somos racistas", O Globo, 09/12/2003

Outro dia, ao me internar num hospital para um check-up , a recepcionista, ao lado das perguntas de praxe (nome, endereço etc.), perguntou-me qual era a minha religião. Fiquei espantado: para que um hospital quer saber a minha religião? Se for para saber se tenho alguma restrição alimentar, basta perguntar diretamente isso. Eu respondi, mas não gostei da pergunta, achei-a uma curiosidade indevida. Ao subir o elevador, senti-me bem num país em que perguntas assim são raras e consideradas pela maioria como indevidas.

Fico também sempre feliz quando constato que vivemos num país em que nenhum candidato a emprego tem de responder a esse tipo de questão ou a outras, como cor ou raça. O leitor pode imaginar: o cidadão se candidata a uma vaga e, em entrevista ou questionário escrito, tem de dizer de que cor é. Uma pergunta virá à mente: qual a cor preferida deles, que candidatos têm mais chances? E a suspeita de racismo se tornaria muito forte. Feliz o Brasil, cujas empresas não perguntam isso a candidato algum.

Não é o que pensam alguns. O Instituto Ethos, em parceria com outras entidades, divulgou um estudo sobre a participação do negro nas 500 maiores empresas do país. E lamentou, com os jornais, o fato de que 27% delas não souberam responder quantos negros havia em cada nível funcional. Esse dado foi divulgado como indício de que, no Brasil, existe racismo. Um paradoxo. Quase um terço das empresas demonstra a entidades seriíssimas que "cor" ou "raça" não são filtros em seus departamentos de RH e, exatamente por essa razão, as empresas passam a ser suspeitas de racismo. Elas são acusadas por aquilo que as absolve. Tempos perigosos, em que pessoas, com ótimas intenções, não percebem que talvez estejam jogando no lixo o nosso maior patrimônio: a ausência de ódio racial.

Há toda uma gama de historiadores sé- rios, dedicados e igualmente bem-intencionados, que estudam a escravidão e se deparam com esta mesma constatação: nossa riqueza é esta, a tolerância. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores da escravidão, mas atestam que, não a cor, mas a condi- ção econômica é que explica a manutenção de um indivíduo na pobreza. Não negam o racismo, porque sabem que onde quer que haja homens haverá todos os vícios que se podem supor. Mas, com números, argumentam que a inexistência da intolerância racial tem raízes na nossa Histó- ria. A verdade é que a escravidão não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos. Tão grande que, na região de Campos, na virada para o século XIX, um terço da classe senhorial era de "pessoas de cor", segundo censos da época. Isso se repetia em Minas e na Bahia. Ou seja, uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais entre os brancos: bastava dinheiro. Hoje, se a maior parte dos pobres é de negros, isso não se deve à cor da pele. Não existe isso, no Brasil: "É negro, deixa na pobreza." Nos últimos cem anos, nosso modelo foi concentrador de renda: quem era pobre boas chances teve de continuar pobre. Há menos de uma década o país tem enfrentado esse desafio. Com uma melhor distribuição de renda, a condição do negro vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, cor não é uma questão.

A pesquisa do Ethos mostra isso, mas o instituto e os jornais preferiram destacar os dados ainda negativos. Manchetes foram para o fato de que, embora os negros sejam 46% da população, apenas 23,4% dos empregados das 500 maiores empresas são negros. Isso foi mostrado como prova de que no Brasil existe racismo, mas a própria pesquisa mostra que talvez isso se deva principalmente à condição educacional dos pobres. Em 1992, o analfabetismo atingia 19,2% das crianças negras entre 10 e 14 anos; em 2002, esse nú- mero caiu para 5,8%. Em 1992, 51,2% das crianças negras estavam atrasadas no ensino escolar; em 2002, esse número desabou para 22,3%, uma queda de trinta pontos percentuais. Ora, em vez de se concluir que, com essa tendência, tudo indica que nos próximos anos a participação dos negros nas empresas será muito maior, preferiu-se destacar o retrato parado da situação de hoje e decretar: os negros não são tão numerosos como deveriam ser naquelas empresas, não por questões educacionais comuns a toda a população pobre, mas porque as empresas são racistas. Mas até mesmo os dados que mostram que negros ganham metade do que ganham os brancos não dizem tudo: a diferença cai muito se educação for um filtro (e, mesmo assim, estatística nenhuma capta diferenças na qualidade da educa- ção recebida)".

É uma maneira torta de ver as coisas. E perigosa, porque pode inaugurar no Brasil o que não há: ódio racial. E há muitos indícios de que ele não existe. Na própria reportagem publicada há dias no GLOBO sobre a pesquisa da Ethos, um funcionário de uma das empresas foi entrevistado. Ele deu um testemunho eloqüente de que nunca enfrentou racismo no emprego. Textualmente, eis o que disse: "Sempre que disputei uma vaga, fiquei com o emprego. Sou um bom profissional e, sem dúvida, um profissional de sorte." Ou seja, ele atestou que nunca a sua cor fora impedimento para conseguir uma vaga, o determinante era o seu talento. Mas o discurso bem-intencionado que vê racismo em tudo está come- çando a ficar tão disseminado que se preferiu publicar o seguinte subtítulo: "O técnico Leílson Gomes credita parte de sua ascensão profissional à sorte." Este é o perigo: o que é um patrimônio passa a ser encarado como obra do acaso. Não, Leílson ganhou todas as vagas que disputou porque nós, brasileiros, conseguimos construir um país que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade: a inexistência de ódio racial. Isso não é sorte. É o fruto da construção de gerações que experimentaram sempre a tolerância. Perder isso, agora, não será azar. Será o resultado de boas intenções que não conseguem ver a riqueza que temos.