"O gerente da crise", O Globo, 08/06/2001 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O gerente da crise", O Globo, 08/06/2001

Cláudio Duarte

"O gerente da crise", O Globo, 08/06/2001

Em 1999, o Brasil ficou perplexo, e deprimido, com a crise que culminou na desvaloriza- ção do real. A inflação voltaria, com ela a miséria, os ganhos do Plano Real desapareceriam e tudo não teria passado de ilusão: estaríamos fadados a ser um país de planos mirabolantes e eleitoreiros, de curta duração. Como deflagradores da crise, fatores externos (as crises da Ásia e da Rússia e a especulação estrangeira contra a nossa moeda) e fatores internos (o erro do governo, visto a posteriori como crasso, de insistir em manter sobrevalorizado o real, com o câmbio rígido e engessado).

O governo, no entanto, após os primeiros dias de confusão, enfrentou o problema, nomeou Armínio Fraga para a presidência do Banco Central e o câmbio flutuante foi adotado. A crise foi superada. Apenas dez meses depois, os mesmos que tinham decretado o fim do país aplaudiam a capacidade do governo de superar o terremoto. A popularidade de FH, que fora ao chão, mais uma vez recuperou-se.

Hoje, o Brasil vive perplexidade igual. De uma hora para outra, somos informados de que a energia está prestes a acabar e que devemos racioná-la, sob pena de enfrentarmos um cruel apagão. Hoje, quase todos decretam: o Brasil, que cresceria 4,5%, nada crescerá, o consumo sofrerá brutal retração, a indústria e o comércio terão de demitir, a crise terá a duração de, no mínimo, três anos. FH mais uma vez estaria no chão e, dali, vaticinam, não mais se erguerá. Como deflagradores da crise, novamente fatores externos ao governo (a maior estiagem em 70 anos, levando os reservatórios das hidroelétricas a quase secarem) e fatores internos (o monstruoso erro do governo de não ter investido o suficiente em fontes alternativas, como as termoelétricas, para fazer frente ao crescente consumo de energia).

Não, não vou dizer que tudo acabará bem, que o governo saberá ultrapassar os problemas e que, ao final, será até aplaudido pela forma competente como nos livrou do sufoco. Não sou adivinho, ainda mais quando se tem que contar com o imponderável, as chuvas. O que digo apenas é que não, esta não é a crise final do governo FH, que decretará o seu fim e determinará a vitória da oposição em 2002. Já vimos filme parecido e o governo soube dar a volta por cima.

Porque o eleitorado tem dado mostras de que amadureceu: sabe avaliar bem o que acontece, sabe separar a crítica justa da mera exploração polí- tica. Se o governo conseguir fazer o país atravessar, sem sobressaltos ainda maiores, a escassez de energia, tudo de fato talvez volte ao seu lugar. O governo precisará mostrar que há na crise um componente de tragédia natural (desde a Idade da Pedra o homem tenta, mas não consegue, fazer chover). Terá que mostrar também que os entraves iniciais ao maior investimento no setor foram superados. Terá de explicar que as termoelétricas estão fazendo falta, mas que não são a panacéia contra apagões, mas um complemento: não se pode pensar que elas sejam nosso seguro total contra estiagens, pois, se fossem, em períodos normais de chuvas, haveria um enorme desperdício de energia. Bem, se conseguir fazer isso tudo, talvez o eleitor entenda que, sim, governar é também saber gerenciar crises.

Porque o eleitorado parece ter percebido que, para adversários, o governo é sempre culpado, esteja ele certo ou errado. Querem ver?

Imagine que o presidente tivesse sido competentemente avisado da gravidade da crise no ano passado. Suponhamos que já em outubro tivesse sido avisado de que se não chovesse como chove todos os anos (há 70 anos), o racionamento seria inevitável. Suponhamos então que, para evitar um racionamento tão grande como o de agora, o presidente tivesse adotado um plano de redu- ção do consumo um pouco mais brando, mas já na primavera, num calorão. Agora, suponha que, como acontecia havia 70 anos, tivesse havido chuvas abundantes, de forma a encher os reservatórios. O que estariam dizendo hoje do presidente? Que ele é um tolo, que submeteu o país a um racionamento indevido, que arrasou a indústria de linha branca (geladeiras, freezers e aparelhos de ar-condicionado) justamente antes do Natal. E tudo por quê? Por temer uma estiagem que nunca acontece. O governo é sempre culpado.

Exagero? Então imagine que no iní- cio do ano 2000, ou ainda mais remotamente, temendo também uma estiagem que ninguém pode prever, o governo tivesse, a toque de caixa, retirado todos os entraves que impediam a construção de termoelétricas. Imagine que tivesse proposto uma legislação ambiental menos rígida (sim, o Ministério Público tem embargado diversas obras por ferir a legislação). Ou imagine que tivesse decidido em dias a questão cambial do gás da Bolívia, matéria-prima essencial para as usinas (os investidores não querem assumir o risco de um aumento na taxa do dólar, querem que o governo absorva este risco). Imagine que, em conseqüência, centenas de termoelétricas tivessem sido construídas. Agora, novamente, imagine que, como é natural, como é rotineiro, tivesse chovido abundantemente. O que diriam? Certamente, que o governo fora irresponsável ao flexibilizar a legislação para constru- ção de termoelétricas, que, diriam, eram uma opção sem sentido, num país com recursos hídricos infindá- veis como o nosso. Diriam que certamente a questão do gás da Bolívia fora decidida apressadamente para saciar o apetite de investidores estrangeiros contra os verdadeiros interesses nacionais. E, certamente, estaríamos vendo hoje o PT clamar pela CPI das Termoelétricas. O governo é sempre culpado.

Mas o eleitorado já aprendeu que tudo é questão de ponto de vista. Mesmo a indefinição das regras do racionamento, com as idas e vindas do governo, que hoje são vistas por muitos como sinal de fraqueza e inoperância, talvez seja apenas fruto do ambiente democrático em que vivemos. No fundo, muitos ainda têm uma alma autoritária e acreditam na existência de um governo onisciente e onipotente, que tudo sabe e tudo resolve. O que há de anormal quando o governo propõe regras, a sociedade analisa, faz a crítica, contrapropõe e o governo muda a decisão? Isto não é defeito; é virtude, possível porque vivemos numa democracia.

Enfim, o eleitor aprendeu que nem o governo é santo nem é demônio. Nem está totalmente certo, nem totalmente errado. E nunca está irremediavelmente no chão. Porque, como o presidente, que ao tomar posse disse que não seria o gerente da crise, também aprendeu que esta talvez seja uma das tarefas mais importantes de um governo.