"O racismo e os números", O Globo, 12/12/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O racismo e os números", O Globo, 12/12/2003

sempre assim: "É óbvio que", e dava a resposta. Tirei boa nota, mas recebi uma lição extra do meu professor Wanderley Lopes. "Dizer que uma coisa é óbvia é chamar o outro de burro." Nem por um minuto imaginei que foi esta a intenção de minha amiga brilhante e parceira de profissão Míriam Leitão. Mas me lembrei do episódio ao ler ontem, no seu artigo, a afirmação, em relação ao suposto racismo do brasileiro: "São muitos os sinais (...) de que afinal a elite não quer mais se esconder atrás da nega- ção do óbvio." Não me senti ofendido, porque sei que foi um jeito automático de falar. Porque todos com alguma afinidade com as ciências e a filosofia sabem, e Míriam sabe como poucos, que o óbvio não existe. Nada é simples na vida.

A começar pelos números. Quer chegar a conclusões próximas da verdade? Então vá aos números, mas a todos os números e não apenas àqueles que são favoráveis à sua tese. Na contestação a meu artigo "Não somos racistas", Míriam e alguns leitores disseram, citando tabelas do IBGE, que os negros ganham a metade do que ganham os brancos. Disseram mais ainda: os negros com mesmo nível educacional ganham menos que os brancos. É verdade? É, mas os dados não demonstram o racismo.

Porque os números estão incompletos, analisaram-se apenas os dados publicados pelo IBGE na "Síntese de indicadores sociais, 2002": como o interesse maior é por brancos, negros e pardos, na brochura, tudo está restrito a esses segmentos. Mas os números vão muito além. Naquelas mesmas tabelas, os números relativos àqueles que se denominam amarelos jamais são citados. E eles são reveladores. No Brasil, os amarelos ganham o dobro do que ganham os também autodenominados brancos:

9,2 salários mínimos contra 4,5 dos brancos (os autodenominados negros e pardos ganham 2,5). Ora, se é verdadeira a tese de que é por racismo que os negros ganham menos, haverá de ser, em igual medida, também por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos. Se o racismo explica uma coisa, terá de explicar a outra, elementar princípio de lógica. E, então, chegaríamos à ridícula conclusão de que, no Brasil, os amarelos oprimem os brancos. Não, o racismo não explica nem uma coisa, nem outra. Porque não somos racistas, repito. A explicação se encontra no nível cultural e na condição econômica dos diversos segmentos da população. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 9,6 anos, os brancos estudam menos, 8 anos, e os negros, menos ainda, 5,7 anos. Os amarelos estudam mais e, por isso, ganham mais. Nada a ver com a cor. Diante desses números, mais lógico seria supor que é preciso redistribuir renda, para que os mais pobres possam melhorar de vida. E aplicar políticas sociais que tenham como alvo os pobres em geral, e não apenas os negros, para que tenham acesso a um ensino de qualidade. Melhor ensino, melhor salário. Porque tudo o que se diz em relação aos negros, pode ser dito com mais propriedade em rela- ção aos pobres, sejam brancos, negros, pardos ou amarelos. São os pobres que têm as piores escolas, os piores salários, os piores serviços. Negros são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre.

Mas o leitor deve estar se perguntando: como pode um negro com o mesmo nível educacional ganhar menos do que um branco? Não pode. Nem as estatísticas dizem isso. O que elas mostram é que negros, com o mesmo número de anos na escola que brancos, ganham menos. Isso não quer dizer que tenham a mesma condi- ção educacional. Basta acompanhar este exemplo hipotético: um negro, por ser pobre, estudou 12 anos, provavelmente em escolas públicas de baixa qualidade e, se entrar na universidade, não terá outra opção senão estudar em faculdade privada caça-níqueis; o branco, por ter melhores condições financeiras, estudou também 12 anos, mas fazendo o percurso inverso, estudou em boas escolas privadas e cursará a universidade numa excelente escola pública. A diferença salarial decorre disto e não do racismo: "Você é negro, pago um salário menor." Infelizmente, não há estatística que meça quanto ganham cidadãos de cores diferentes com igual qualificação educacional. Da mesma forma, não é correta a afirma- ção de que brancos e negros, em fun- ções iguais, ganhem salários desiguais. O IBGE não mede isso. Não há tabela mostrando que marceneiros brancos ganhem mais que marceneiros negros. O que ele faz é estratificar os segmentos em categorias: com carteira, sem carteira, domésticos, militares e estatutários, por conta própria e empresários. Ou por setores: indústria, comércio, agricultura etc. Mas nunca por função ou ofício ou nível hierárquico.

Vejamos o que acontece com militares e estatutários: de fato, negros ganham R$ 843,51 e brancos, R$ 1.201,56. Mas, novamente, é a qualificação educacional que conta para a diferença, não a cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num país republicano como o Brasil, que se orgulha da sua Constituição Cidadã, um servidor público, civil ou militar, possa ganhar mais por causa da cor? Impossível, as carreiras são tabeladas. Ocorre é que quem não tem dinheiro não se gradua em general, por exemplo, seja branco ou negro. Há, provavelmente, mais cabos de origem humilde (portanto, mais negros) do que generais. A ausência de racismo fica mais clara quando se pesquisa uma categoria específica como os militares, mas sem a possibilidade de haver diversos níveis educacionais: os domésticos. Sem diferenças em anos de estudo, encontramos que a média salarial de negros é de R$ 203 reais e de brancos, R$ 211, praticamente iguais, portanto.

O debate entre visões diferentes é sempre saudável. Eu acredito que a solução não é instituir políticas sociais com base na cor, correndo-se o risco de fazer o Brasil enfrentar algo desconhecido por aqui: o ódio racial. A solução é a continuação de políticas sociais voltadas para os pobres em geral, brancos, negros, pardos e amarelos. Se o Brasil mantiver este caminho, em pouco tempo as estatísticas vão mudar de tom. Sem ódios.