"O Papa e o escândalo", O Globo, 15/05/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O Papa e o escândalo", O Globo, 15/05/2007

Muito corajoso esse Papa. Não me refiro aqui à coragem de reafirmar posi- ções da Igreja que encontram pouca ressonância nas multidões de hoje em dia, como a questão da defesa da virgindade, do matrimônio, a repulsa ao divórcio. Como disse um entrevistado numa das centenas de reportagens publicadas nos últimos dias, notícia seria ele afirmar o contrário. Todas essas questões podem ser reguladas pela Igreja, mas, nos dias de hoje, para uma vasta maioria, continuarão a ser uma questão de foro íntimo. A Igreja, do alto de seus 2.000 anos, diz a seus fiéis o que é ou não pecado, e os fiéis, diante de algumas questões, parecem querer apostar que Deus é capaz de compreender o dissenso. A Igreja os considera, nas palavras do Papa, "cristãos batizados mas não suficientemente evangelizados". A frase pode ser vista como um insulto a quem se quer profundamente católico, porém disposto a discordar, por dentro, da hierarquia eclesiástica. Analisando de perto, no entanto, a frase soa mais como uma resignada autocrítica. Esse "dissenso" vai dar em algum lugar. Sempre deu. Onde, ninguém sabe. Mas a julgar pelo fato de que a Igreja é a instituição mais longeva do Ocidente, melhor não duvidar de sua capacidade de se mover. Melhor assim.

O que me impressionou no Papa em São Paulo foi a sua coragem ao discursar na Fazenda Esperança. Depois de constatar que as drogas são um problema gravíssimo no Brasil e na Amé- rica Latina, o Papa declarou: "Digo aos que comercializam a droga que pensem no mal que estão provocando a uma multidão de jovens e de adultos de todos os segmentos da sociedade: Deus vai-lhes exigir satisfações." A muitos pareceu apenas que o Papa estava dizendo o óbvio (para quem crê): que os traficantes são pecadores que terão de se entender com Deus depois. Mas foi muito mais do que isso. Na seqüência da frase, Bento XVI disse: "A dignidade humana não pode ser espezinhada dessa maneira. O mal provocado recebe a mesma reprovação dada por Jesus aos que escandalizavam os 'pequeninos', os preferidos de Deus."

Era uma referência a Mateus, capítulo 18. Os discípulos perguntam quem é o maior no Reino de Deus. Jesus chama ao centro uma criança e diz que quem não se fizer uma criança, quem não for humilde como ela, não entrará no Reino dos Céus. Em seguida, Jesus lança uma maldição a quem cause "escândalo": "Caso alguém escandalize um destes pequeninos, melhor será que lhe pendurem ao pescoço uma pesada mó [a grande pedra de um moinho] e seja precipitado nas profundezas do mar." (Mt 18, 6). Ou seja, o Papa quis dizer que o crime que os traficantes cometem é merecedor das palavras mais duras proferidas por Cristo. Um choque para os que tendem a ver o tráfico como uma atividade dos que não tiveram opção, dos marginalizados, daqueles que são "empurrados" para o crime. Nada disso. O Papa diz alto e bom som o que, na linguagem de advogados, seria classificado de "crime hediondo".

Chamei de maldição a frase de Jesus porque é assim que a trata o Catecismo da Igreja Católica, que também define "escândalo" como "a atitude ou o comportamento que leva outrem a praticar o mal". "O escândalo se reveste de uma gravidade particular em virtude da autoridade dos que o causam ou da fraqueza dos que o sofrem. Foi o que inspirou a Nosso Senhor a maldição: 'Caso alguém escandalize um destes pequeninos, melhor será que lhe pendurem ao pescoço uma pesada mó e seja precipitado nas profundezas do mar'," diz o Catecismo. É uma passagem forte. Se a Igreja sofresse do mal do literalismo ou de interpretações radicais, logo surgiria alguém para dizer que ali Jesus admitiu a pena de morte. Não se trata disso, evidentemente. Jesus usa de uma metáfora para afirmar, da maneira mais categórica possível, que há homens que se comportam de tal modo que não são dignos do dom da vida. Os traficantes são gente assim.

Isso também não quer dizer que a Igreja condene a pena de morte, em toda e qualquer circunstância, tal como muitos imaginam. No mesmo Catecismo está dito: "O ensino da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se esta for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto. Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana." Ou seja, se o agressor puder ser contido e preso, em nenhuma hipótese ele deve ser condenado à morte, mas, num caso em que nada seja suficiente para contê-lo, a morte deve ser a pena prescrita. Um exemplo poderia ser a de um criminoso que mantém reféns, mata alguns e dá todas as mostras de que matará os demais. Esgotados todos os recursos para neutralizá-lo, todos mesmos, matá-lo é um imperativo. O curioso é que ao contar isso a muitas pessoas, católicas, a surpresa foi grande. Elas pareciam acreditar que o "não matarás" e o mandamento de Cristo de oferecer a outra face e amar o seu inimigo devessem ser seguidos ao pé da letra.

O problema é que o pé da letra não existe. Na visita do Papa, de tudo o que ele nos disse, acho que o que mais nos deveria tocar foi a condenação sem meios tons daquela que é hoje uma de nossas maiores aflições: o tráfico de drogas que move o crime. Nosso olhar para os traficantes não deve ser nunca condescendente. Eles não merecem piedade. Eles são um escândalo.