"Pobreza Maquiada", O Globo, 13/12/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Pobreza Maquiada", O Globo, 13/12/2005

Se alguém rompe a linha da pobreza porque recebe uma ajuda em dinheiro do governo, é correto que as estatísticas deixem de considerar essa pessoa como sendo pobre?

O bom senso diz que não: tire a ajuda e o pobre voltará a ser pobre.

Em todas as linhas da pobreza divulgadas, houve queda acentuada no nú- mero de pobres. Entre as explicações mais convincentes, o crescimento econômico, a baixa inflação e o aumento do salário-mínimo, com grande impacto nas aposentadorias e pensões de todo tipo. Para o governo e alguns pesquisadores, no entanto, o Bolsa-Família teria tido um impacto decisivo. Com as estatísticas disponíveis, porém, isso é impossível de ser comprovado.

O IBGE é um centro de excelência e a PNAD é um dos mais importantes instrumentos para se conhecer a realidade brasileira. A metodologia da pesquisa, porém, ainda não permite subtrair da renda das famílias os recursos provenientes de programas sociais. Assim, os pesquisadores que elaboraram linhas de pobreza não tiveram outra opção senão considerar toda a renda das famí- lias, quando o ideal teria sido registrar a renda antes e depois da ajuda do governo, até mesmo para que o retrato obtido mostrasse a eficácia dos programas: desse modo, teria sido possível identificar qual a contribuição específica do Bolsa-Família na variação para mais na renda das famílias. É dessa maneira que agemos países da União Européia, por exemplo. Apenas com a PNAD, é impossível medir o impacto direto e inequívoco do Bolsa-Família na redução do número de pobres.

Diante desse quadro, temos mais uma confirmação de que o Bolsa-Família é um programa caríssimo e com um controle frágil. O tal cartão magnético, que registraria automaticamente a freqüência dos alunos, ficou, mais uma vez, para o ano que vem. Até lá, o controle é feito à mão pelos professores e depois posto na internet pelas secretarias, num processo ainda complicado. O último relatório divulgado é de julho e, apesar de já ter resposta de 80% das escolas, as notícias não são boas: apenas 66% das crianças tiveram a freqüência escolar acompanhada. O controle das exigências no campo da saú- de é ainda apenas projeto. E não podia ser diferente. O pobre não deixa de cuidar da saúde porque quer, mas porque não tem acesso aos serviços. Como o governo não pode oferecê-lo à multidão que recebe o Bolsa-Família, ninguém se preocupa em cobrar nada. E, agora, sabemos que as estatísticas disponíveis não dão ao governo sequer a certeza do papel que o Bolsa-Família tem nas famílias que romperam a linha de pobreza. Um quadro desolador.

Pesquisadores sérios dizem que a influência do Bolsa-Família na redução da pobreza foi pequena: afinal, se a soma de todos os benefícios juntos atinge alguns bilhões de reais, considerando o benefício médio mensal, hoje da ordem de R$ 65, cada membro de família beneficiada recebe apenas cinqüenta centavos por dia.

Mas imaginemos que o governo está certo e que o impacto do Bolsa-Família na diminuição da pobreza tenha sido de fato grande. Nessa hipótese, seríamos então obrigados a dizer que o retrato obtido nas linhas de pobreza não teria sido o de uma pobreza menor, mas de uma pobreza "maquiada". Os índices estariam anabolizados. Se de fato o pobre rompeu a linha da pobreza por causa do Bolsa-Família, como apregoa o governo, quando essa ajuda for tirada, o pobre voltará a ser pobre. Porque o Bolsa-Família não acaba com a pobreza, mas apenas atenua os seus efeitos. O que tira um pobre da pobreza é o emprego. E só consegue emprego quando há um quadro de crescimento econômico. E só consegue bons empregos aquele que tem qualificação. Crescimento econômico e educação de qualidade são a fórmula segura para a um só tempo diminuir a pobreza e encurtar a desigualdade.

A pergunta que faço então é simples: num país como o Brasil, em que ainda não é universal o acesso a coisas básicas como educação de qualidade, é justo que o governo gaste um caminhão de dinheiro em programas como o BolsaFamília? Como mostrou a Pesquisa de Orçamento Familiar, a questão do Brasil não é a fome: no Brasil o percentual de pessoas emagrecidas, único indicador que realmente mede a quantidade de famintos, é inferior ao limite máximo considerado normal. Se é assim, eu acredito que o Brasil tem necessidades mais urgentes. Investir em educação é uma delas, porque somente ela é capaz de emancipar uma pessoa. A outra é investir na infra-estrutura do país de modo a superar os gargalos que impedem o nosso desenvolvimento.

E, no entanto, o governo prefere gastar em 2006 R$ 8,3 bi no Bolsa-Família. Em educação, investirá apenas R$ 8 bi, enquanto impõe ao ministro da Fazenda o papel de dizer não aos R$ 4,5 bi necessários à implantação do Fundeb, tido como essencial para melhorar a qualidade do ensino no Brasil. Para a rubrica investimentos, haverá apenas R$ 14 bi, o que obrigará o Brasil, por muitos anos, a enfrentar portos deficientes, estradas caindo aos pedaços, falta de usinas hidrelétricas e escassez de recursos para financiar o parque industrial.

Assim, mesmo se o Bolsa-Família fosse realmente eficaz no "combate à pobreza" (e não há agora como medir isso), o dinheiro gasto com ele até poderia ter um impacto imediato nos índices de pobreza, mas este seria um impacto virtual, artificial, aparente. Em qualquer hipótese, no médio e no longo prazos, o Bolsa-Família estará contribuindo, paradoxalmente, para a manutenção de milhões de brasileiros na pobreza, uma vez que drenará os recursos que deveriam estar indo para educação e para a infra-estrutura essencial ao crescimento. E sem educação e sem empregos, ninguém sai, de fato, da pobreza. Terá de viver, eternamente, de esmola.

É um tiro no pé. Mas que rende votos. Eis, talvez, a origem da insensatez.

O governo Lula parece ter metido o Brasil num nó sem saída: quem será o político que terá coragem de explicar o paradoxo e mexer num programa que atinge uma multidão de eleitores?