"O porteiro de Deus?", O Globo, 26/06/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O porteiro de Deus?", O Globo, 26/06/2007

Prometo que esta não será uma espécie de redação, como aquelas que fazíamos na escola sobre "nossas férias". Mas acho que esta última viagem tem algo a dizer sobre o mundo em que vivemos.

Estive em Israel, país realmente maravilhoso, um tesouro arqueológico, que deveria ser destino de todos aqueles interessados em conhecer de perto o lugar de onde viemos. Ok, não sou um estúpido e conheço bem o caldeirão de conflitos que aquela parte do mundo representa, o sofrimento do povo palestino, oprimido, agora lutando entre si e se dividindo em dois quinhões fratricidas. Mas vou passar ao largo disso, porque não estive na Cisjordânia ou em Gaza, onde não há segurança para ninguém. Em Israel, o que vi foi um país orgulhoso de si, em eterna construção, com um povo nas ruas verdadeiramente desejando a paz. Vi arte, cultura, diversão e segurança. Israel é mais seguro e tranqüilo do que muitas de nossas cidades. Recomendo.

Mas este artigo não é um guia turístico. Quero dar o testemunho de como alguns muçulmanos se tornam perigosamente veículos do vírus da intolerância.

Impressionou-me o fato de que no chamado Muro Ocidental — as ruínas do que sobrou do II Templo — o acesso seja livre a quem ali queira estar. Ninguém pergunta se você é ateu, espírita, muçulmano, cristão ou seja lá o quê. Entre os judeus, há a crença de que o templo, tendo sido um dia a morada de Deus, nunca deixará de ser: se ainda restam algumas pedras, ali Ele estará. Um único pedido é feito aos visitantes: que a cabeça dos homens seja coberta em sinal de respeito. Pode ser por um quipá (o solidéu que os judeus usam e que ali estão disponíveis para os desavisados) ou um chapéu ou mesmo um simples boné, não importa. É a única exigência: o que você fará ali é problema seu. E, para os crentes, de Deus também. Uma coisa é certa: o lugar, ao qual só se chega depois que atravessamos ruelas que remontam a milhares de anos, tem uma grande força mística.

O mesmo se pode dizer dos lugares santos para cristãos. A liberdade é total em Nazaré, onde está a Igreja da Anunciação, com a gruta em que o anjo Gabriel disse à Maria que ela daria à luz Jesus, filho de Deus, ou em Jerusalém, onde estão Getsêmani, a gruta no Monte das Oliveiras em que Jesus foi capturado pelos romanos, ou o Santo Sepulcro, onde estão, lado a lado, o local da crucificação de Cristo, a pedra onde o seu corpo foi lavado e purificado e a tumba onde foi sepultado até a ressurreição. Ali, entram o fiel em sua peregrinação mais sagrada e o turista disposto a ver com os próprios olhos um lugar de importância incomensurável para o mundo ocidental. Nenhuma pergunta é feita. É verdade que, para entrar na tumba de Jesus, o padre ortodoxo que organiza a fila pede, às vezes de maneira pouco cortês, que as mulheres com camisetas sem mangas cubram os ombros. Mas é só.

O choque se deu quando decidi visitar Al-Aqsa, a terceira mesquita mais sagrada para os muçulmanos, e, em frente a ela, o Domo da Rocha, aquela cúpula dourada que faz de Jerusalém uma cidade ainda mais linda e que guarda a pedra de onde Maomé, na companhia do anjo Gabriel, partiu para conhecer o Paraíso. Minha mulher e Rubens, nosso guia, puderam entrar na Esplanada das Mesquitas, mas, desde o início, sabíamos que ambos não teriam acesso ao interior dos templos, desde 2000 vedados a não-muçulmanos. Em Al-Aqsa, os problemas já se fizeram sentir. O guarda palestino — sim, os lugares santos muçulmanos são controlados por eles —, ao ver o meu nome no passaporte e saber que eu não falo árabe, ficou contrariado, fez muitas perguntas, mas acabou me deixando entrar.

No Domo da Rocha, tudo foi mais violento. Ao ver meu passaporte, e o meu nome islâmico que me franqueava a entrada, o guarda quis saber se eu era capaz de ler o Alcorão em árabe. Eu não menti, mas acrescentei que o conhecia muito bem em muitas traduções. Ele se irritou. Ao meu lado, estava o guia (notoriamente judeu, dado o credenciamento). Em hebraico, o policial exigiu que eu recitasse em árabe a Shahadah, o testemunho de fé muçulmano: "Não há outro deus senão Deus, e Maomé é o seu mensageiro". Eu me recusei. Depois, o policial exigiu que eu recitasse as primeiras palavras do Alcorão: "Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, louvado seja Deus, Senhor do Universo, o Clemente, o Misericordioso, Soberano do Dia do Juízo, servimos-Te e invocamos-te em nosso auxílio, guia-nos pelo caminho direito, pelo caminho dos que auxiliaste, não pelo caminho dos que incorreram na tua cólera, nem pelo dos que se perderam". Eu me recusei. Então, novamente o policial me encarou e exigiu saber se eu, lá dentro, rezaria.

Minha perplexidade chegou ao ápice. Por que eu haveria de revelar coisas tão íntimas a um policial fardado? Diante de meu nome, do meu olhar, de minha fala em inglês e de minhas companhias judaicas, ele decretou: "Sorry, you will not go inside". (Perdão, você não vai entrar).

Quando um homem feito de carne e osso como todos nós decide que é o porteiro de Deus, as coisas vão mal, muito mal.

No mundo islâmico, apenas Meca e Medina são vedadas a não-muçulmanos. Todas as mesquitas são abertas a quem queira visitá-las (eu e minha mulher já visitamos muitas, em muitos países árabes, sem problema algum). Até a segunda intifada em 2000, também era assim em AlAqsa e no Domo da Rocha.

Torço para que aquele guarda seja uma exceção no mundo muçulmano. Mas que ele ouse agir assim, e daquela maneira, é um sinal dos tempos que eu espero seja superado. Aquele guarda e os que pensam como ele necessitam saber que Deus não precisa de protetores. Nós, sim.