"Quando?", O Globo, 07/03/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Quando?", O Globo, 07/03/2006

Eu me lembro bem de quando fui apresentado a uma biblioteca. Estava com onze anos e tinha acabado de chegar a uma nova escola. A bibliotecária se chamava Graça, era jovem, gostava do que fazia e, melhor, gostava da minha curiosidade. Dizendo assim parece piada, mas eu me encantei pelos segredos da catalogação: aquelas fichas eram o caminho seguro para um mundo de assuntos, qualquer um: bomba atômica, poluição, árabes (um tema caro a um jovem que vinha de uma família de imigrantes) e, claro, biologia (aparelho reprodutor, sexo, temas caríssimos a todo pré-adolescente). Havia também, naturalmente, a possibilidade de consultar a partir dos autores, e eles eram uma multidão, nomes que eu nunca tinha visto antes. Graça ficava atrás do balcão, terreno proibido para os estudantes pela Irmã Emerenciana, responsável pela biblioteca. Depois de muita insistência, porém, Graça me permitiu ver como os livros ficavam dispostos, todos rotulados de acordo com o número que constava das fichas: estantes e mais estantes de livros, o equivalente mais modesto, mas, mesmo assim, muito poderoso, do Google de hoje em dia (sem o lixo). No início, o que me interessou mesmo foi a coleção de "As aventuras de Tintim", que eu li toda, mas, com o tempo, comecei a recorrer à biblioteca sempre que um assunto martelava na minha cabeça. Na minha formação, aqueles livros foram fundamentais.

Da mesma forma, o laboratório de ciências da escola provocou em mim uma impressão que eu nunca vou esquecer. Eram bancadas retangulares de ladrilhos brancos, bem altas, dispostas em duplas, cada uma com uma pia. Nós nos sentávamos em bancos altos, o que nos fazia sentir importantes. Um dia, na aula de ciências, depois de apresentados ao aparelho nervoso, fomos conhecer no laboratório um cérebro conservado em formol. O cheiro forte nos fez chorar, mas vestir luvas descartáveis e sentir nas mãos as estruturas do cérebro com seus sulcos e fendas nos fazia ter precocemente os sentimentos que os alunos de medicina têm nas aulas de anatomia. Não sei quantos de nós se tornaram médicos; sei que aquelas aulas me fizeram ter a certeza de que "Humanas" era a minha área. No mesmo prédio do laboratório, havia uma sala que apelidávamos de museu, com animais empalhados, insetos catalogados e algo a que apenas os mais velhos do científico tinham acesso: fetos humanos em diferentes estágios conservados em formol. No mesmo andar, uma sala de projeção, um cineminha com cadeiras em patamares diferentes, sempre mais altos, para que ninguém atrapalhasse a visão.

E, no entanto, o Santa Rosa de Lima era (e ainda é) apenas um colégio simples de bairro, voltado para a classe média de Botafogo, Flamengo e adjacências. Nunca foi um colégio de elite, caro, nunca constou da lista dos mais badalados, mas tinha um projeto a que as irmãs dominicanas se dedicavam (e se dedicam) com zelo. Tampouco era o único com esse perfil; havia (e ainda há) muitos. O problema é que o esmagamento da classe média é de tal ordem que uma família com os recursos proporcionais aos que a minha tinha na época dificilmente pode matricular hoje quatro filhos em colégios com qualidade.

Todas essas reminiscências me vieram à mente depois de uma visita à página do Instituto Nacional de Educação Pública Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC. A boa notícia é que, diferentemente do que acontecia na minha época, hoje 100% das crianças estão na escola. Mas as estatísticas sobre educação me fizeram ter a certeza de que estamos a anosluz do que realmente precisamos para educar o nosso povo. Segundo dados de 2003 (os mais recentes), de todas as escolas públicas de ensino fundamental, apenas 23% têm bibliotecas, só 5% dispõem de laboratórios de ciências, 13% contam com salas de vídeo, 27% têm computadores, 9% possuem laboratórios de informática e somente 10% têm acesso à internet. Entre os professores que trabalham para a rede pública, apenas 55% têm curso superior.

É uma situação desoladora, que não levará a maior parte dos alunos a superar os entraves da pobreza e manterá o Brasil na eterna posição de país pobre e desigual.

O que poucos percebem é que também a escola privada não é um oásis no meio de um sistema de ensino degradado. Oferecem mais recursos, mas, pelas estatísticas, há muitos pais que se esforçam para pagar por um ensino privado que nem de longe lhes dá o que devia: 24% das escolas privadas de ensino fundamental não têm biblioteca, 69% não têm laboratório de ciências, 45% não têm salas de vídeo, 47% não dispõem de laboratório de informá- tica, 18% não contam com computadores e 48% estão desconectadas da internet. Basta também que os pais se interessem por saber qual o salá- rio dos professores de seus filhos para que cheguem à conclusão de que o dinheiro não é suficiente para que eles sustentem a família e ao mesmo tempo possam comprar livros e fazer os cursos necessários para o seu contínuo aperfeiçoamento. Isso vale para todas as escolas, mesmo as de elite.

Ninguém está a salvo.

Enquanto isso, o governo prefere continuar gastando bilhões em polí- ticas assistencialistas sem foco, como tenho tentado mostrar aqui. Em qualquer município é possível, numa rápida pesquisa, encontrar comerciantes, funcionários públicos e parentes de vereadores recebendo o Bolsa Família. A imprensa tem mostrado isso, e, toda vez, o governo diz que são casos isolados, mas não são. O Ministério do Desenvolvimento Social tenta limpar o Cadastro Único, de onde devem sair os beneficiários de programas sociais, mas o trabalho anda lentamente, muito lentamente. Com a eleição, corre o risco de não produzir conseqüências.

Apenas para dois programas — Bolsa Família e os Benefícios de Prestação Continuada, ambos, a meu ver, com problemas de foco e público-alvo superestimado — o governo prevê gastar R$ 19,3 bi em 2006. Enquanto isso, o orçamento previsto para investimentos em educação é de R$ 8,5 bi. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico (Fundeb), ainda não aprovado pelo Congresso, prevê que a União participará dele com recursos de R$ 2 bi no primeiro ano; ao fim de quatro anos, a participação será de R$ 4,5 bi ao ano. Uma quantia ainda assim pequena para modificar o quadro que tracei aqui.

Esse é o beco em que nos metemos: remediar a pobreza com recursos que são altos pelo desperdício e falta de foco em vez de vencê-la com investimentos realmente maciços em educação.

Quando os políticos entenderão que a educação é a chave de tudo?