"Raças não existem", O Globo, 17/05/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Raças não existem", O Globo, 17/05/2005

Não faz muito tempo, um comentarista de TV a cabo disse, confiante, que certas doenças e certas qualidades são geneticamente determinadas pela raça. Ouvi também um jornalista de rádio dizer, em relação ao caso do jogador Grafite, que nada se pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma raça: "O nome da raça é negra", ele disse. E, claro, impossível esquecer o então candidato Lula, afirmando, num debate, que certamente haveria uma maneira científica de determinar se alguém é da raça negra. O curioso é que as três manifestações se deram num contexto de repúdio ao racismo. O que eles desconhecem é que acreditar que raças existem é a base de todo racismo. Raças não existem.

Nos últimos 30 anos, este é o consenso entre os geneticistas: os homens são todos iguais ou, como diz o geneticista Sérgio Pena, os homens são igualmente diferentes.

O mesmo não se dá com os animais. Tomemos o exemplo dos cães. Todos sabemos que há várias raças da espécie canina. Elas são bem diferentes entre si, tanto na aparência quanto no comportamento: há raças maiores e menores, compridas e curtas, inteligentes e obtusas, dóceis e agitadas. Qualquer um saberá dizer, de longe, qual é o bassê e qual é o dog alemão. Pois bem, o que faz o bassê e o dog alemão serem de raças diferentes é que bassês se parecem mais com bassês, do ponto de vista da genética, do que com dogs alemães. Reúna um grupo de bassês: haverá animais mais compridos que outros, mais altos que outros, com focinhos mais pontudos que outros. Mas a variabilidade entre bassês será sempre menor do que entre bassês e dogs alemães.

Com homens, isso não acontece, e é isso a nossa beleza, a nossa riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar homens e cães, mas é a falta de informação de muitos que me leva a usar expediente tão constrangedor.

Consideremos dois grupos. O primeiro com aqueles que o senso comum diz serem da "raça" negra: homens de cor preta, nariz achatado e cabelo pixaim. O segundo com aqueles que o mesmo senso comum diz serem da "raça" branca: homens de cor branca, nariz afilado e cabelos lisos.

Desde 1972, a partir dos estudos de Richard Lewontin, geneticista de Harvard, o que a ciência diz é que as diferenças entre indivíduos de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de negros haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. No grupo de brancos, igualmente, haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. A única coisa que vai variar entre os dois grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, isso porque os dois grupos já foram selecionados a partir dessas diferenças. Em tudo o mais, os dois grupos são iguais. Na comparação odiosa, dois bassês são geneticamente mais homogê- neos do que um bassê e um dog alemão e, por isso, formam duas raças distintas. Com os homens, isso não acontece.

O genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferenças mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno que perfazem uma fração insignificantemente pequena se comparado à de todos os genes humanos. Para ser exato, as diferenças entre um branco nórdico e um preto africano compreendem apenas uma fração de cerca de 0,005% do genoma humano. Por essa razão, a imensa maioria dos geneticistas é peremptória: no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar em raças. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever a seqüência do genoma humano, "raça é um conceito social, não um conceito científico".

Uma fonte de confusão são estudos freqüentemente divulgados em que se diz que uma doença é mais comum entre negros ou entre brancos, ou entre amarelos. Isso nada tem a ver com raça, mas com grupos populacionais, que se casam mais freqüentemente entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele também determinassem essa ou aquela doença para se relacionar "raça" e a doen- ça, e isso não existe. A ciência já mostrou que a associação entre ra- ça e doença não passa de um mito, como me disse o geneticista Antô- nio Solé-Cava, da UFRJ.

Por exemplo, o caso da anemia falciforme entre negros. Sabe-se hoje que quem tem essa doença é também mais resistente à malária. Não à toa, o gene da anemia falciforme é mais freqüente em algumas áreas da África, onde a presença do mosquito transmissor da malária é maior, fato determinado pela seleção natural. Nas outras regiões da África, o gene da anemia falciforme é raro. Assim, não se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidade de ter este o gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com antepassados vindos de certas regiões onde o mosquito transmissor era numeroso.

Além disso, se os negros oriundos daquelas regiões têm mais freqüentemente o gene da anemia falciforme (ou de qualquer outra doença), isso não torna o gene exclusivo desse aquele grupo. Isso vale para qualquer doença, para qualquer grupo. Tão logo o indiví- duo portador de certo gene se case com outro que não tenha o gene, o filho dessa união poderá vir a herdá- lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho herdar uma pele mais clara e se casar com uma branca, o filho dessa nova união poderá ser branco e, mesmo assim, herdar o gene. Definitivamente, não existem genes exclusivos de uma determinada cor. Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja mais comum que grupos populacionais tenham uma carga genética mais parecida. Em lugares em que a miscigenação predomina, como aqui, isso é muito mais improvável.

A cor da pele não determina sequer a ancestralidade. Nada garante que um indivíduo negro tenha a maior parte de seus ancestrais vindos da África. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, devido ao alto grau de miscigenação. O geneticista Sérgio Pena já mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores moleculares de origem geográfica, ele analisou o patrimônio gené- tico de cidadãos negros da cidade mineira de Queixadinha e descobriu que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente não-africana, isto é, maior do que 50%. Considerando-se os brancos de todo o Brasil, descobriu-se que 87% deles têm ao menos 10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse número cai para apenas 11%. Ou seja, no Brasil, há brancos com ancestralidade preponderante africana e negros com ancestralidade preponderante européia. Somos, graças a Deus, uma mistura total.

A crença em raças, porém, não é apenas fruto da ignorância. Volta e meia surge dentro da própria ciência alguém disposto a desafiar o consenso reinante: o destino de todos eles é o esquecimento, mas, quando surgem, fazem muito barulho. É o caso do biólogo britânico Armand Marie Leroi. Em março último, escreveu um explosivo artigo para o "New York Times", asseverando que raças não somente existem como seu conceito é bem-vindo, já que ajudaria no diagnóstico e tratamento de certas doenças, mito, como vimos, já desfeito. Os argumentos de Leroi são na verdade uma revalidação das antigas cren- ças dos antropólogos do século XVIII que criaram a noção de raça. Em resposta, dezenas de cientistas escreveram artigos reafirmando as descobertas da genética. Não disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo está em todo lugar. Entre cientistas, inclusive.

Raça será sempre uma constru- ção cultural e ideológica para que uns dominem outros. Eu continuo acreditando que o preconceito no Brasil é em relação à pobreza e não à cor da pele. Mas indivíduos que se sentem perseguidos pela cor devem lutar por seus direitos. Não devem, no entanto, sucumbir ao argumento racista de que pertencem a uma ra- ça. Devem dizer que querem os mesmos direitos porque somos todos iguais. Ou igualmente diferentes.