"Racismo e fraude", O Globo, 15/06/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Racismo e fraude", O Globo, 15/06/2004

Acampanha para provar que o Brasil é um país racista não esmorece. Há uma semana, o IBGE divulgou pesquisa sobre emprego e raça, e os jornais concluí- ram que os dados "comprovavam" que os negros são discriminados no mercado de trabalho. Foi um erro, um passo além do que os números permitiam dizer. A pesquisa revelou que os negros — a soma de pretos e pardos — são a maioria dos desempregados, têm as piores ocupações e ganham a metade do salário dos brancos (essa ficção, quem é branco no Brasil?). Mas nada no estudo permitia dizer que os negros estão nessa condição porque o Brasil é racista ou porque os brancos são racistas ou porque os empregadores discriminam os negros. A pesquisa não mostrou, porque isso seria impossível, que um engenheiro negro ganha metade do que ganha um engenheiro branco. Ou que um porteiro branco recebe o dobro do que recebe um porteiro negro. Como já mostrei em artigos anteriores, os negros vivem essa situação porque são, na maioria, pobres e, como todos os pobres, tiveram acesso a escolas piores, a um ensino deficiente. Sem estudo, não há trabalho, não há emprego, não há bons salários.

O governo, no entanto, em vez de concentrar esforços para elevar a qualidade de ensino no Brasil e para dar escola de bom nível a todos os pobres, sejam brancos, negros ou pardos, parece preferir colocar a culpa nos brasileiros brancos. É, sem dúvida, uma solu- ção simples: tira a responsabilidade de si próprio, faz crescer um sentimento de culpa nos brancos, leva os negros a culpar os brancos pelas condições em que vivem e a agradecer ao governo o favor de denunciar a situação. Mas não resolve o problema, e pode criar outros, tão ou mais sé- rios: o ódio racial, sentimento que até aqui desconhecíamos, e demandas impossíveis de atender. Daqui a pouco, anotem, haverá quem proponha uma lei estabelecendo aumento salarial de não sei quantos por cento aos negros para que a distorção salarial seja sanada. Para parecer sensata, a proposta será de pequenos aumentos anuais por um prazo de x anos, até que negros e brancos ganhem salários iguais. Se os negros no Brasil ganham menos porque são discriminados, nada mais correto do que corrigir a situação por decreto.

Não, nada é simples. O mal deste país não é o racismo. Ele existe aqui, como em todo lugar, mas, entre nós, nem de longe se transformou na marca de nossa identidade. Sempre nos orgulhamos do nosso ideal de nação, um país de miscigenados, em que o pró- prio conceito de raça faz pouco sentido. A Grã-Bretanha está em meio a uma campanha para que os britânicos se aceitem como uma nação multiétnica: no metrô de Londres, há cartazes em que se vêem uma jovem muçulmana envolta num véu feito da bandeira nacional, um negro com um boné de rapper também nas cores da bandeira, um asiá- tico com um aplique na roupa nas mesmas cores e um branco com uma bandeira simulando uma mochila. Todos britânicos, mas sem mistura. Uma nação multiétnica, portanto.

Até há pouco, os brasileiros riríamos dessa iniciativa. Querendo deixar o racismo para trás, os brancos britânicos se esforçam ao menos para acolher como concidadãos pessoas de outras raças, desde que não se misturem. Os que vê- em o Brasil como racista querem dar dois passos atrás. Não nos reconhecem nem como a nação miscigenada que sempre quisemos ser, nem como uma nação multiétnica, com uma infinidade de cores, cafuzos, mamelucos, mulatos, brancos, pardos, pretos. Querem-nos uma nação bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os negros. É triste.

O nosso problema não é o racismo, mas a pobreza e o modelo econômico que, ao longo dos anos, só fez concentrar a renda: os que eram pobres — e os negros, ex-escravos, por definição foram os despossuídos da nação — permaneceram pobres ou ficaram mais pobres; e os que eram ricos, ricos ficaram ou enriqueceram ainda mais. O Brasil deveria estar unido para resolver esse problema, distribuindo renda e investindo maciçamente em educação. Quando os pobres deste país tiverem uma educação de qualidade, todos terão a mesma chance no mercado de trabalho. E as distorções entre brancos e negros terão um fim. Em vez disso, o governo só busca saídas paliativas: não faz nada para garantir boa educação, mas cria cotas, para que os negros entrem na universidade, sem o preparo devido, o que, muito provavelmente, não fará deles profissionais competitivos e aumentará a frustração.

PS: Segundo o IBGE, 49,2% dos desempregados são brancos e 50,4%, negros, praticamente um empate. Dizer que isso é a prova de que há racismo no mercado de trabalho é algo que entendo como fraude.