"O racismo e o provão", O Globo, 15/01/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O racismo e o provão", O Globo, 15/01/2004

A que se destina uma política de cotas raciais nas universidades? Facilitar o acesso de negros aos bancos escolares de nível superior, dizem os defensores das cotas. Mas será que as portas do ensino superior estão mesmo fechadas para negros?

Não me oponho a que se defenda tal política, mas cobro clareza, transparência e honestidade intelectual. É preciso que os cidadãos brasileiros conheçam a questão em todos os seus ângulos para que possam julgar se o remédio está certo ou errado ou mesmo se há algum remédio a ser prescrito.

Tive acesso a uma pesquisa feita pelo Ministério da Educação entre os estudantes de nível superior que se submeteram ao chamado "provão". Os resultados são surpreendentes: 4,4% dos alunos de universidades federais se declararam negros, sendo que a população de negros no país é de 6,2%, segundo o Censo de 2000 do IBGE. Nas universidades estaduais, o número é mais expressivo: os que se declaram negros são 5,5%. Os pardos são, nas federais, 30,3% e, nas estaduais, 30,5%. A população brasileira que se declara parda é de 39%, também segundo o Censo. Onde está a gritante defasagem?

A pesquisa ganha ainda mais importância quando se atenta para um detalhe: ela foi feita entre os 390 mil alunos, de 26 áreas, que estavam cursando o último ano de estudos, quando estão prestes a se formar. Portanto, ela é o retrato da situação de negros e pardos depois de todos os gargalos. Em outro artigo, eu já tinha desfeito um engano. Toda a política de cotas é baseada na suposição de que os negros, apesar de serem 45% da população, eram a imensa maioria entre os pobres, 64%. Mas isso é um duplo engano. Na verdade, os negros são 7% dos pobres e 6,2% da população. Os defensores das cotas só chegam àqueles números dilatados porque somam os números de pardos aos números de negros e, sem explicar por quê, chamam a todos de negros. Assim, somando-se os 7% de negros pobres aos 57% de pardos pobres, chega-se aos tais 64%.

Da mesma forma, somando-se os 6,2% dos negros aos 39% dos pardos, chega-se ao número geral de 45%. Mas na hora de se beneficiar das cotas, os pardos são excluídos. Assim como os 19 milhões de brancos pobres, 36% do total. Só os negros terão direito às cotas.

Alguns leitores disseram que eu estou enganado, porque os pardos podem muito bem ser definidos como afro-descendentes, o que justificaria a soma de pretos e pardos. Bastaria, então, que a medida provisória que permitirá a adoção de cotas não fale em negros, mas em afro-descendentes para que as injustiças sejam postas de lado. Parece razoável? Nem um pouco.

Chamar um pardo de afro-descendente é mais do que inapropriado, é errado. Tenho uma amiga cujo pai é negro assim como todos os ascendentes dele. A mãe é italiana, assim como todos os ascendentes dela. Como chamá-la apenas de afro-descendente? Por que lógica? Se alguma ló- gica existe, o correto seria chamá-la de ítalo-afro-descendente ou afro-ítalo-descendente, como preferirem. E como todos os pardos são, na origem, fruto do casamento entre brancos (europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser genericamente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim, direito a cotas ou o prefixo "euro" os condena irremediavelmente? Se tiverem, o governo terá dificuldade de explicar à legião de 19 milhões de brancos pobres por que eles, somente eles, ficam fora do benefício.

Falando assim, tão cruamente, pretendo deixar claro como todas essas definições são em si racistas. Porque não devemos falar em negros, pardos ou brancos, mas apenas em brasileiros. E como parece justo e republicano, não devemos beneficiar ou prejudicar cidadãos em função da cor de suas peles. Os recursos do país devem ser usados em benefício de todos os cidadãos e dos mais pobres especialmente. De todas as tonalidades