"Racismo e Estatística", O Globo, 12/06/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Racismo e Estatística", O Globo, 12/06/2007

Como no artigo passado, comento aqui mais um estudo que pretende resolver a dúvida sobre se é a pobreza ou o racismo o que faz a maior parte dos negros (os pretos e os pardos) ter um desempenho na vida e na escola pior do que a maioria dos brancos: "Relações raciais na escola: reprodução de desigualdade em nome da igualdade", de Mary Garcia Castro e Miriam Abramovay. As autoras fizeram duas coisas. Pesquisas qualitativas, em Belém, Salvador, Brasília, São Paulo e Porto Alegre, abrangendo em cada uma dessas cidades cinco escolas (duas privadas e duas públicas), com entrevistas e grupos focais com alunos, professores e pais de alunos. E uma análise quantitativa com base nos dados do Saeb de 2003, uma prova que mediu a proficiência de 92.198 alunos da 4ª série em matemática e português em 5.598 escolas.

Desprezarei a pesquisa qualitativa, ao menos hoje, por falta de espa- ço, e por considerar que ela está contaminada em excesso por uma visão preconcebida das pesquisadoras. Na análise quantitativa, os resultados indicam que 56% dos alunos negros (pretos e pardos) se encontram abaixo da média considerada "crítica", contra 44,7% dos alunos brancos. Até aí, nenhuma novidade. Mas as autoras dizem que conseguiram acabar com a eterna dúvida: esse desempenho pior entre os negros se deve à pobreza ou à discriminação racial? Após comparar alunos que elas acreditam que estejam em "situação de igualdade socioeconômica" ou na "mesma faixa de renda", declaram: "Mesmo em situações de igualdade socioeconômica os alunos negros atingem uma proficiência mé- dia inferior àquela obtida pelos alunos brancos". Bingo, o desempenho pior se deve ao racismo.

Mas não é nada disso. As autoras cometeram um estupendo erro metodológico.

A Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa desenvolveu uma metodologia para estimar o poder de compra das pessoas. Trata-se do "Critério de Classificação Econômica Brasil", que divide a população entre as classes A1, A2, B1, B2, C, D e E. Às vezes, agregam-se duas classes ou mesmo quatro. Tal classificação, porém, nada tem a ver com renda.

Como é que se define se um cidadão pertence a uma classe? De uma pequeníssima lista de bens e facilidades (televisão em cores, rádio, banheiro, automóvel, aspirador de pó, máquina de lavar, vídeo ou DVD, geladeira e freezer), perguntase quantos de cada item o entrevistado possui. Pergunta-se também se o entrevistado tem empregado doméstico mensalista (incluindo motorista) e qual o grau de instrução do chefe de família. Os bens relacionados, o número de empregados e o grau de instrução do chefe da casa vão somando pontos. Serão da classe A1 todos os que somarem de 30 a 34 pontos; da classe A2, de 25 a 29 pontos (e assim por diante, até a classe E, de 0 a 5 pontos).

Não é preciso muito esforço para se perceber que duas pessoas podem ser da classe A (A1 e A2) mesmo tendo rendas e padrões de vida muito diferentes. Alguém será da classe A caso tenha quatro televisores em cores tipo plasma de 52 polegadas, 10 rádios ultramodernos, cinco banheiros todos com hidromassagem, três Mercedes na garagem, seis empregados domésticos, quatro aspiradores de pó, três máquinas de lavar de última geração, quatro DVDs, quatro geladeiras, dois freezers e more numa casa cujo chefe tenha pós-doutorado. Da mesma forma, será também da classe A o cidadão que tiver um televisor em cores de 14 polegadas com 10 anos de uso, quatro radinhos de pilha, dois banheiros (um na casa e outro numa portinha, no fundo do quintal), dois automóveis (um Brasília 77 e um Gol 92), uma empregada, sem carteira assinada, ganhando menos do que um salário mínimo, um aspirador de pó velhinho, um vídeo de 10 anos, uma geladeira de duas portas enferrujada e que more numa casa cujo chefe tenha o superior incompleto. Alguém em sã consciência dirá que essas duas pessoas estão em situação de igualdade socioeconômica? As autoras dizem.

O chamado "Critério de Classificação Econômica Brasil" parece grosseiro, e é, mas tem muita utilidade quando o interesse é ter uma idéia geral do tipo de público que um produto alcança, por exemplo. Se a idéia é lançar um produto para a classe AB, não adianta anunciá-lo num programa de rádio rejeitado por essas mesmas classes, por exemplo. Mas é inadequado usar esse tipo de critério para fazer pesquisas que requeiram uma precisão maior, um retrato mais em foco. As autoras usaram um binóculo acreditando estar usando um microscópio.

Pegaram os dados do Saeb, desagregaram por cor e classe econômica pelo Critério Brasil, e disseram que 23,40% dos negros de classe A têm pontuação considerada "crítica" ou "muito crítica" em matemática, enquanto apenas 10,40% dos brancos de mesma classe se encontram nessa situação. Em todas as outras classes, a desvantagem seria também dos negros. Na classe B, 25,80% contra 31,40%; na classe C, 44,10%, contra 48,90; na classe D, 61,80% contra 64%, e na classe E, 78,7% contra 80,6%. Como os negros são 60% dos pobres no Brasil, em cada uma dessas classes é muito provável que eles estejam em pior situação econômica do que os brancos.

E, o pior, as autoras não anunciam, em cada faixa, qual a margem de erro, que aumenta à medida que os números são desagregados. Assim, não tenho sequer certeza de que algumas das diferenças apontadas — por volta de cinco pontos percentuais — sejam mesmo uma diferença. A conferir.

A estatística permite muitas coisas, mas ainda não foi dessa vez que o racismo pôde ser traduzido em números.