"Síria: a diferença que falta", O Globo, 16/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Síria: a diferença que falta", O Globo, 16/04/2003

As ameaças dos EUA têm o mesmo tom, o mesmo modelo, talvez as mesmas intenções, mas, definitivamente, a Síria não é um Iraque. Há, claro, algumas semelhanças. Síria e Iraque protagonizaram muitos golpes de Estado, nos anos 60 passaram a ser controlados por um mesmo partido político — o socialista Baath — até que um golpe dentro de um golpe levou ao poder dois ditadores que governaram seus países com mão-de-ferro. Mas as semelhanças param por aí.

A diferença começa com o petróleo. A Síria tem reservas de apenas 2,5 bilhões de barris, nú- mero insignificante se comparado às reservas do Iraque, que chegam a 130 bilhões de barris. A produção é de 535 mil barris/dia, metade deles consumidos internamente, uma produ- ção que declina ano a ano (o pico foi de 590 mil barris em 1996). A esse ritmo, a previsão é que em dez anos o país se torne importador de petróleo. Além disso, a principal companhia de petróleo — al-Furat Petroleum Co (AFPC) — é uma joint-venture entre a Syrian Petroleum Company, a Shell e a PetroCanadá. Para os ingleses, isso faz a diferença. Mas não é só.

O Iraque se meteu nos últimos 20 anos em duas guerras expansionistas, e suicidas, contra duas nações islâmicas, o Irã e o Kuwait. Isso o transformou num pária internacional e num país odiado no mundo árabe. No mesmo período, a Síria manteve o ódio a Israel, tentando continuar na condição de lí- der dos árabes contra o poderio israelense. O resultado no Iraque é que o povo foi levado à miséria, conseqüência não só das guerras, mas do embargo econômico de 12 anos. A Síria, mesmo destinando dois terços de seu orçamento para a guerra, conseguiu manter um padrão de vida relativamente bom para os seus cidadãos.

Os números falam por si. A mortalidade infantil no Iraque, considerados mil nascimentos, era de 103 crianças; na Síria, este número é de 23 (no Brasil a taxa é de 31). Na Síria, a expectativa média de vida é de 70 anos; no Iraque, 67 (no Brasil, 67,7). Na Síria, 80% das casas são servidas com água encanada e 90% têm esgoto; no Iraque, 85% têm água e 78%, esgoto (no Brasil, os números são de 87% e 76%, respectivamente). Na Sí- ria, 95% das crianças são vacinadas contra tuberculose, 94% contra a pólio e 97% contra sarampo; no Iraque, os números caem para 75%, 67% e 63% (no Brasil, os números são de 93%, 98% e 99%). Do primário à universidade, a escola, na Síria, é pública e gratuita. Os serviços médicos públicos são também universais e de boa qualidade. Até o ano 2000, toda família tinha direito a uma cesta de alimentos gratuita, com chá, açú- car, trigo etc. Esse benefício foi suspenso e temeu-se que uma onda de protestos varresse o país. Mas, como os alimentos na Síria são baratos (graças ao clima, a produção é grande) e, como a repressão do governo é ainda maior, nada aconteceu.

Não que a Síria seja um paraíso: o que se fez ali foi dividir a pobreza. O salário de um mé- dico, chefe de setor num grande hospital, não passa de US$ 100. Evidentemente, isso gera grande insatisfação, especialmente numa economia estatizante, com pouco espaço para a iniciativa privada, mas com uma elite rica, poderosa e corrupta. O maior problema da Sí- ria, porém, é a falta de democracia. Desde que tomou o poder em 1970, Hafez Assad governou o país com o uso da for- ça bruta: pôs na cadeia os opositores e a tortura de presos virou rotina. O sistema foi construído para perpetuá-lo (e os seus sucessores) no poder: há um Parlamento eleito de quatro em quatro anos, mas o Baath tem assegurado, constitucionalmente, a maioria das cadeiras. De qualquer forma, só quem detém o poder é o presidente. É ele que nomeia, demite, baixa decretos. O Parlamento não pode sequer propor leis, mas apenas examinar aquelas que são mandadas pelo presidente. Com um regime fechado assim, Hafez Assad conseguiu a proeza de fazer o sucessor mesmo depois de morto: o jovem Bashar, um oftalmologista que, à última hora, ocupou o lugar de herdeiro antes destinado ao irmão mais velho, morto num acidente de carro.

Como o pai, Bashar tem conseguido manter o povo unido não só com uma forte repressão, mas também com uma retórica nacionalista contra Israel, que desde 67 ocupa parte do seu território, as Colinas de Golã (oficialmente, Israel não existe no mapa, o país é chamado de "os territórios árabes ocupados"). Como é um país militarmente exaurido, a Síria tem apoiado tudo o que possa desestabilizar Israel. Tem sido acusada de abrigar grupos terroristas palestinos, como Hamas e Jihad Islâmica, dando-lhes base territorial e a possibilidade de movimentar fundos. A Síria nega, mas todos sabem que ela apóia tais grupos na ilusão de que o alvo será sempre Israel. Como se isso fosse legítimo.

O governo sírio esquece, porém, que o ideário desses radicais do Islã defende uma teocracia islâmica que reúna todas as nações muçulmanas. Esquece, principalmente, que, em 1982, teve de enfrentar uma revolta liderada pela Irmandade Mu- çulmana, que tinha o mesmo programa político dos terroristas de hoje. A feroz repressão ao movimento custou dez mil vidas. É uma amnésia mútua: os terroristas de hoje se esquecem da repressão do passado e o governo sírio finge que não entende o real propósito dos terroristas.

Melhor faria a Síria se levasse ao extremo as suas diferen- ças com o Iraque: aproveitando-se das ameaças americanas, deveria abrir suas portas para o escrutínio da comunidade internacional, romper seus laços com os grupos terroristas, obter a paz com Israel e, fundamentalmente, levar adiante um projeto de democratização do regime. Porque as ditaduras não duram para sempre. Muitos acreditaram que o jovem Bashar faria isso. Até aqui, não fez. Parece delírio, mas muitos países obtiveram êxito na transição.