"Sobre o classismo", O Globo, 22/02/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Sobre o classismo", O Globo, 22/02/2005

B. é empregada doméstica. Branca, segundo ela própria e o consenso brasileiro. O patrão dela, como parte da remuneração, paga-lhe um excelente plano de saúde. B. é visivelmente pobre: na maneira de vestir, digna e decente, mas com roupas baratas; na maneira de falar, com um vocabulário restrito e sem seguir a norma culta; na maneira de agir, sempre muito tímida em ambientes formais.

Certa vez, B. passou mal e procurou uma clínica de "fundo de quintal", na definição dela. Quando soube, o patrão estranhou: "Por que você não procurou os melhores hospitais? Seu plano cobre." Numa segunda ocasião, B. foi direto ao melhor hospital. Dirigiu-se ao balcão e disse que não estava se sentindo bem. Com cara de desprezo, a recepcionista disse que aquele era um hospital particular. B. respondeu que sabia e mostroulhe a carteira do plano de saúde. A recepcionista, que provavelmente ganhava um salário menor do que o de B. e morava num bairro semelhante ao dela, perguntou, sem atinar para a ofensa contida na pergunta: "Essa carteirinha é sua mesmo?" Depois, mandou que B. esperasse. E, como estava acostumada nos hospitais públicos, B. ficou esperando por um bom tempo, até se dar conta de que estava sendo mal atendida. Saiu sem se queixar, e se dirigiu a outro hospital particular. Com uma ou outra diferença, a cena do primeiro hospital se repetiu. Cansada de esperar, B. procurou a clínica de "fundo de quintal" e foi atendida.

O curioso é que B., poucos dias depois, estava furiosa com um entregador de restaurante que "subiu pela frente" para entregar a comida. "Hoje em dia, só tem folgado," disse B. Tudo isso me foi relatado pelo patrão de B. na mesa de um restaurante. E eu mesmo o vi destratando um garçom que não entendia bem o que ele estava pedindo.

Conto essa história em função da rea- ção a meu artigo "Lula e o 'classismo'". Muitos leitores e conhecidos reagiram ao que escrevi, seja para concordar, seja para rechaçar, o que me leva a voltar ao tema. É certo que o "classismo", o preconceito contra pobres, é universal, existe em todas as partes do mundo, e eterno, sempre existiu e, infelizmente, jamais deixará de existir. Mas, entre nós, ele se reveste de características que são, acentuadamente, mais nossas.

Aqui a pobreza vem acompanhada de baixíssimo nível de educação formal e informação, o que torna o nosso pobre, em geral, mais submisso, menos consciente de seus direitos. Em vez de B. "rodar a baiana" nos dois hospitais, ela preferiu se retirar. Em países desenvolvidos, embora o "classismo" exista como aqui, os seus efeitos são menos ostensivos, porque o pobre de lá, com maior nível de instrução e sabedor dos seus direitos, dificilmente sofre calado o preconceito. A exceção aqui é o banditismo em larga escala. Ou oito ou oitenta. Por outro lado, o nosso gigantismo populacional e a nossa enorme desigualdade social provocam dois fenômenos: a distância entre os que têm algum dinheiro e os pobres é enorme, mas os dois contingentes são grandes. Nossa "elite" é do tamanho de alguns países europeus e sul-americanos, o que faz com que exista sempre à vista um remediado para destratar um pobre.

Ao lado disso, a nossa miscigenação é uma realidade, e derruba por terra o argumento de que somos estruturalmente racistas. Não podemos ser. Um dado, a miscigenação, desmente o outro, o racismo. Evidentemente, como sempre me preocupo em dizer, o racismo existe aqui como em todo lugar, mas não é, nem de longe, uma marca de nossa identidade nacional. Analisando bem de perto é o "classismo" a razão oculta por trás da maior parte de manifestações aparentemente racistas. Como os negros são a maioria entre os pobres, uma relação automática e inconsciente entre pobreza e negritude se estabelece, e o preconceituoso destrata o negro.

Prova disso é que grande parte das ocorrências de racismo se dão com negros que não são pobres. São barrados em hotéis de luxo, confundidos com motoristas, seguranças, quase sempre na suposição de que são pobres. Ou alguém imagina que a um branco, visivelmente pobre, seria permitido entrar nos salões sem problemas? O caso de Flávio Ferreira Santana, o dentista paulista negro assassinado por cinco policiais, exemplifica o que quero dizer.

Se os cinco policiais que o mataram eram também negros, informação que não vi em nenhuma das reportagens sobre o caso, como falar de racismo? O dentista morreu porque foi confundido com um pobre. E um pobre, saindo de um carro novo, só sendo bandido, concluíram de forma odiosa os policiais. Mas, e os policiais, não são eles mesmos pobres? Se o fato de serem negros me faz dizer que não pode ali ter havido racismo, porque o fato de serem pobres não me impede de apontar para o "classismo" como o motivo do crime?

A razão é uma só. O "classismo" é tal que um pobre sempre encontra um mais pobre para descontar o preconceito que ele próprio sofre na própria pele.

É por tudo isso que tenho uma preocupação e uma esperança. A preocupa- ção é que as políticas de cotas raciais jamais eliminarão as bases de um preconceito que não é racial, mas social, como o "classismo". Ao contrário, as cotas poderão criar no Brasil um racismo que até aqui não conhecíamos. Entre os pobres, cor não é nem privilégio nem demérito de ninguém. As cotas farão com que passe a ser, estimulando no Brasil a cisão racial da pobreza. É um risco enorme. A esperança é que uma política educacional, justa e eficaz, e uma maior distribuição de renda, ao diminuírem a pobreza, diminuam também o "classismo". Não eliminaremos de nossa alma esse sentimento mesquinho. Mas haverá menos gente para sofrê-lo.