"Sumiram com os pardos", O Globo, 11/02/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Sumiram com os pardos", O Globo, 11/02/2004

Até pouco tempo atrás, os defensores de cotas raciais trabalhavam com os números relativos aos negros de tal modo que chegavam a dizer que o Brasil tinha a maior população negra depois da Nigéria e que os negros eram a maioria entre os pobres brasileiros, razão pela qual mereciam ações afirmativas que os retirassem dessa situação. Diante disso, esclareci em diversos artigos que os negros são apenas 6,2% dos brasileiros segundo o Censo de 2000, e 7% dos pobres, e que os números citados pelos defensores de cotas raciais só ficam tão dilatados porque eles consideram que os negros são a soma de pretos e pardos (estes são 39% da população e 57% dos pobres).

Fiz tal esclarecimento porque temia que os pardos fossem usados para engordar as justificativas para as cotas, mas, na hora de se beneficiar delas, ficassem de fora. E lembrei o exemplo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que instituiu cotas para negros e barrou 76 inscritos porque suas fotos denunciavam que eles não cumpriam as exigências: não tinham a pele negra, nem o nariz achatado e nem cabelo pixaim. Eram pardos. Eu temia também que as cotas trouxessem ao Brasil o que não conhecemos — o ódio racial — e relegasse à própria sorte, além dos pardos, 19 milhões de brancos pobres.

Agora que o esclarecimento foi feito por mim, e não por eles, os defensores de cotas raciais se justificam em jornais e revistas, alegando que chamam a pardos e pretos indistintamente de negros porque os dois grupos têm desempenhos em tudo semelhantes em diversos indicadores sociais. Seria rotina acadêmica juntá-los e chamá-los de negros. E tentam afastar o perigo que venho apontando, dizendo que ninguém discute que as cotas beneficiarão tanto pretos como pardos, justamente porque pertencem a uma mesma categoria social. Isso seria um pouco mais tranqüilizador, mas creio, no entanto, que esteja apenas no campo das boas intenções. Do contrário, como explicar o que aconteceu em Mato Grosso do Sul, onde pretos entraram e pardos foram barrados? E há outros casos que comprovam que os meus temores são concretos.

Em 9 de novembro de 2001, o então governador do Rio, Anthony Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj dentro de um espírito mais largo. Eis o que diz o artigo primeiro: "Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf)." Notem que a lei fala em negros e pardos. A ser verdadeira a tese de que chamar pretos e pardos de negros é rotina, o movimento negro e os defensores de cotas raciais teriam cometido uma redundância na elaboração da lei.

Mas não se tratou de redundância. Para a lei, negro era sinônimo de preto e pardo era pardo mesmo. Mas não passou muito tempo para que os defensores das cotas raciais estreitassem a lei. Afinal, no primeiro vestibular, entraram muitos pardos com nariz afilado, cabelos lisos e pele em tom claro. Aproveitando a necessidade, constatada pelo governo do estado, de harmonizar a lei das cotas raciais com uma outra lei que instituía também cotas para alunos da rede pública, unificando-as numa só lei, os defensores das cotas se mobilizaram de tal modo que os pardos foram excluídos da legislação. A lei 4.151, sancionada em 4 de setembro de 2003, vetou as cotas aos pardos, com a seguinte redação do artigo primeiro: "Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes: I — oriundos da rede pública de ensino; II — negros; III — pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas." Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores.

E o sumiço dos pardos não foi obra de nenhum conceito abrangente de alguns pesquisadores que consideram que pardos são negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois parágrafos para definir coisas simples, um para definir o que entende por "estudante carente" e, outro, para definir o que entende por "aluno oriundo da rede pública". Mas não há nenhum parágrafo para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar que, para o legislador, "negros são a soma de pretos e pardos", mas não o fizeram). E, pior, acrescentaram um parágrafo, aceitando a autodeclara- ção como forma de os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade crie mecanismos para combater fraudes. Tomara que não sigam o exemplo de Mato Grosso do Sul e exijam fotos. Se um pardo se fizer passar por negro, é fraude, cassese a inscrição.

Haverá ainda alguém capaz de repetir que ninguém discute que cotas raciais são para pretos e para pardos? Difícil conciliar essa crença com o que acontece no Rio e em Mato Grosso do Sul. Volto a repetir: sei que o racismo existe no Brasil como em qualquer parte onde haja homens, mas, entre nós, ele não é preponderante. E a cor não impede ninguém de entrar na universidade. Quem impede é a pobreza, ao impor um ensino médio ruim, seja a negros, pardos ou brancos.

Quem tem lido os meus artigos pode estar se perguntando por que insisti, até aqui, no tema. É porque considero que todos os que debatem o assunto são sempre sinceros e movidos pela boa-fé, tentando sempre o melhor para o país. Isso não faz de mim um ingênuo obtuso nem um cí- nico. Faz de mim um jornalista que acredita que ninguém é dono da verdade e que todos os assuntos devem ser discutidos. Mesmo os mais espinhosos. Uma coisa é certa: depois de tanta discussão, com debate de opiniões diferentes, o leitor tem a seu dispor material suficiente para formar o seu juízo.

P.S. — Um último dado para a reflexão: a Universidade Federal da Bahia foi estimulada a adotar cotas. Enfrenta um dilema: uma pesquisa feita entre os alunos aprovados no vestibular mostrou que 51% deles se declaram negros. Como conciliar esse dado com a adoção de cotas de 40% para negros?