"TV Globo ontem e hoje: O que mudou?", O Globo, 29/06/1999 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"TV Globo ontem e hoje: O que mudou?", O Globo, 29/06/1999

Cláudio Duarte

"TV Globo ontem e hoje: O que mudou?", O Globo, 29/06/1999

A contratação de Ana Maria Braga pela TV Globo reforçou uma tese: a emissora estaria se popularizando para conquistar audiência. A questão está mal posta de saída: uma TV aberta comercial que se pretenda elitista, em contraposição a uma TV popular, morrerá de inanição. Uma TV é aberta a milhões, e a elite brasileira talvez coubesse num fusca, se ele ainda existisse. Fica então estabelecido que ser popular é um imperativo inescapável a toda e qualquer TV aberta. A questão, portanto, não está em ser popular ou não, mas em ter qualidade ou não.

O curioso é que os críticos dos recentes movimentos da Globo em face da concorrência tratam do fenômeno com um ineditismo que ele definitivamente não tem. Parecem ao mesmo tempo supor que a Globo dos anos 70 e 80 tinha uma programação voltada para intelectuais e que era imune à concorrência, sem nenhum abalo no Ibope. Nada mais fantasioso.

Ponto um: programação. Em que pese a alta qualidade de sua produção - não foi à toa que se cunhou a expressão "Padrão Globo de Qualidade" - a programação da Globo sempre foi estritamente popular, com novelas, telejornais e programas de entretenimento. Uma semana qualquer de meados de 70, por exemplo, poderia ter sido mais ou menos assim, no que diz respeito à linha de shows: aos domingos, "Programa Sílvio Santos" seguido do "Fantástico"; às segundas, sempre um humorístico, baseado em esquetes cômicos nem um pouco politicamente corretos: "Balança mas não cai", "Faça humor, não faça a guerra", "Satiricom", "Planeta dos homens"; às terças, "Moacir Franco Show", em que o próprio, em meio a canções melosas ("Eu nunca mais vou te esquecer, meu amor"), fazia quadros cômicos vestido como aquele mendigo de voz rouca; às quartas, "Globo de Ouro", apresentado por um casal de atores, ele sempre de smoking, com as músicas mais tocadas nas rádios (claro, o equivalente hoje da axé music, do pagode, do sertanejo); às quintas, Chico City , com os tipos caros ao humorista; às sextas, o "Globo Repórter", com tema obviamente de apelo popular; e aos sábados, um filme, no "Primeira Exibição". Todos programas de qualidade, todos finamente produzidos, mas absolutamente populares, ao gosto do povão, longe do agrado da elite intelectual. Claro, ontem, como hoje, sempre houve espaço para programas mais sofisticados e experimentais, mas não eram o foco da programação.

Ponto dois: concorrência. Os analistas de TV registram a atual disputa de audiência em certos horários como se fosse inédita e, por conseguinte, estranham os movimentos da Globo para fazer frente a ela. Nada mais equivocado. Em certos casos, quando disputou com programas populares de baixa qualidade ética (que exploravam o chamado "mundo cão"), a Globo sempre teve problemas. Em outros, teve dificuldades quando confrontada com talentos que até ali não reconhecia. Para cada um dos casos, seguiu estratégias diferentes: contra o "mundo cão", persistiu na qualidade; para combater os talentos adversários, tratou de contratá-los. E obteve êxito nos dois casos.

Flávio Cavalcanti, por exemplo. Em maio de 78, ele voltava à TV Tupi com tudo o que lhe era peculiar. Na crítica ao programa de estréia, Maria Helena Dutra escreveu no "Jornal do Brasil": "Ele continua exatamente o mesmo. A igual preocupação com o show, a procura do impacto, a veia policial e o sensacionalismo de sempre". E mais adiante, prosseguia: "E uma tragédia familiar, que nunca deveria sair desse âmbito, foi servida como iguaria a sádicos. O animador se deliciou e a mãe em lágrimas compactuou com este momento penoso de falta de caridade em público".

De fato, cada época tem o Ratinho que merece. Mas qual terá sido o resultado no Ibope? É a mesma Maria Helena quem nos conta, no seu artigo de então: "Por isso, ou apesar disso, ele encontra bastante público para a propagação de suas idéias e modo de apresentação. (...) Na estréia, começou obtendo 17 pontos do Ibope contra 17,57 da sua principal concorrente, a Rede Globo, com o seu Fantástico. A briga entre ambos continuou com os seguintes números: às oito e meia, o canal 4 ficou com 17,54 e Flávio baixou para 12,7. Às nove horas, a coisa mudou. Embora seja repugnante, graças à mãe que chorou, o 6 foi para 21,7 e a Globo baixou para 10,51. A contenda continuou favorável a Flávio no final, porém em números menores. Teve 13 pontos contra 10,5 da concorrente". Soa atual, não?

Entre o final dos anos 70 e o início dos 80, a Tupi pôs no ar o "Aqui e Agora": vários apresentadores exploravam todo tipo de miséria humana. Maridos traídos, aleijados sem cadeira de roda, menores grávidas, endemoninhados etc. Com este cardápio, o programa atingiu ótima audiência, batendo a Globo em sua programação vespertina. Naquele caso, como hoje com Ratinho, não havia como disputar no mesmo campo, e a Globo decidiu manter sua linha. O fato é que o sucesso do programa fez a coisa se espalhar por várias emissoras: os principais titulares do "Aqui e Agora" saíram da Tupi para a TVS, de Silvio Santos, e lá criaram o "Agora é Aqui", depois batizado de "O Povo na TV", com formato idêntico. A disputa ente os dois foi grande, e acabou beneficiando a Globo. Com o fim da Tupi, o "Aqui e Agora" mudou-se para a Band. O "mundo cão" reinou nas duas emissoras até que elas percebessem que os altos índices de audiência eram improdutivos: não atraíam anunciantes. E os dois programas acabaram fora do ar. Foi mais uma vitória da qualidade.

Saiamos agora um pouco do terreno do "mundo cão"e entremos no mundo dos talentos. Em meados dos 70, Renato Aragão obtinha sucesso na Tupi, com programas que faziam os intelectuais torcerem o nariz para ele. O sucesso era tamanho, que a revista "Veja" em outubro de 75, registrou: "Aragão se tornou o artista preferido das crianças, e, embora seu programa seja exibido às 21 horas pela Rede Tupi, tem conseguido uma média de 25% de audiência em 13 estados. E, no Rio, o progressivo aumento de público de Os Trapalhões forçou a quase imbatível Rede Globo a mudar três vezes de programa nos últimos três anos para enfrentar Aragão. Com uma média de 25% de Ibope, ele já conseguiu quase igualar os índices da "Grande Família", "Globo Repórter" e, agora, Chico City". Como se vê, mexer na grade de programação para combater a concorrência nunca foi crime - na verdade, sempre foi uma arma - e contratar adversários com audiência, mesmo contra a opinião de pretensos intelectuais, uma arma maior ainda. Renato Aragão foi contratado pela Globo que, nos primeiros programas cometeu um erro logo corrigido: colocou o quarteto de smoking - este traje era uma obsessão do Padrão Globo de Qualidade de então. A união dos Trapalhões e da Globo deu certo e os intelectuais logo mudaram de idéia. A "Veja" em setembro de 79 publicou: "Aragão nem sabe direito quem é que andou elogiando seu programa. Mas não esconde o orgulho ao dizer que, ’depois que os intelectuais falaram bem, virou moda assistir aos Trapalhões’. E, como os intelectuais autorizaram, ’ninguém precisa mais fingir que viu o programa ao passar pelo quarto de empregada’." Fenômeno parecido ao de Chacrinha, a quem a chamada intelectualidade desprezava. Os gritos de "Teresinha, UUUH" e o jogar de bacalhau e frutas na platéia eram sinônimo do que havia de pior, de mais "popular". Depois de passar por todas as emissoras e voltar à Globo, onde encerrou a carreira, é que Chacrinha se tornou um guru, um papa da comunicação.

Problemas de audiência, num mercado que é aberto, em que as pessoas são absolutamente livres para mudar de canal (falar em monopólio é puro delírio), sempre existiram. E os domingos da Globo passaram anos com problema, desde a saída de Silvio Santos da emissora. A grade de programação era mexida com freqüência bastante grande, mas nada batia Silvio. "Sete meses depois de deixar a poderosa Globo, levando seu terno e seu jeito de vendedor bem-sucedido para a Tupi, Silvio Santos conseguia batê-la por boa diferença no Ibope. Teve um domingo, nesse mês de março, em que a vitória foi daquelas de envergonhar o adversário: 48 a 7", dizia a Folha de S. Paulo de março de 1977. E prosseguia: "Enquanto isso, os homens da Globo mudam Moacir Franco de horário, tiram a loura Pepita Rodrigues do ar, imaginam como ficaria a morena Lady Francisco em seu lugar - na busca do sucesso". A situação persistiu por bastante tempo, com altos e baixos. Em setembro de 79, a revista "Veja" dizia: "Renato Aragão só faz ampliar a sua faixa de espectadores, (...) e ainda é a única atração que consegue vencer a maratona de Silvio Santos na Tupi". Os problemas com Silvio só foram resolvidos com a chegada de Fausto Silva, outro talento capturado da Bandeirantes.

A memória é curta e, por isso, vale aqui mais um exemplo. Apesar de toda a carga de preconceito que pesava sobre ela (dizia-se até que errava na concordância verbal), Xuxa foi contratada pela Globo para substituir a "Turma do Balão Mágico" e o "TV Mulher". A iniciativa visava a um alvo concreto: o palhaço Bozo, que ameaçava a Globo no horário matinal. "Com a contratação de Xuxa, a Rede Globo espera superar de vez os picos de audiência de Bozo, seu concorrente na TVS", dizia o "Jornal do Brasil" na época. "Espera-se que Xuxa desbanque o grande concorrente da emissora no horário das 8 às 9 da manhã: o palhaço Bozo, da TVS. Nesse período o programa da concorrente incomoda a Globo; algumas vezes chega a empatar com o TV Mulher, e mesmo a vencê-lo", escreveu a revista "Afinal" em junho de 86. Dispensável dizer que o êxito foi total.

Olhando-se com a perspectiva do passado, não se entende direito toda essa polêmica em torno das novas atrações da Globo, das mexidas em sua grade de programação, do sucesso que programas tipo "mundo cão" fazem. Tudo isso, de uma forma ou de outra, já aconteceu, e venceu quem preferiu apostar na qualidade, sem deixar de ser popular. No presente, como no passado, é preciso admitir serenamente que a Globo é líder absoluta de audiência, embora sofra, agora como antes, problemas pontuais com este ou aquele horário, com este ou aquele programa, com esta ou aquela novela. Evidentemente, as proporções mudaram, como mudou o Brasil. Em 1980, para uma população de 123.032.000, havia 19.602.000 aparelhos de televisão em uso no país; Em 1997, para uma população de 155.162.602 , eram já 53.500.000 aparelhos em uso (portanto, em números absolutos, a audiência forçosamente terá crescido, mesmo que tenha havido uma diminuição em termos percentuais). E como atualmente existem 2.500.000 de assinantes de TV paga, com um leque de mais de uma centena de canais, é evidente que a disputa pela audiência mudou, o que leva a uma constatação: continuar a ser líder em praticamente todas as faixas de horário é um feito ainda maior hoje do que foi no passado.