"A universalidade da sapatada", O Globo, 21/12/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"A universalidade da sapatada", O Globo, 21/12/2008

Não pude deixar de rir. Todo mundo falou a mesma coisa, aqui e lá fora. "Na cultura árabe, arremessar sapatos é uma grande demonstração de desrespeito", publicou a Bloomberg.com. "Arremessar sapatos contra alguém é um insulto tremendo no Oriente Médio", divulgou a Reuters. "Na cultura iraquiana, jogar sapatos contra alguém é um sinal de desprezo", informou a Associated Press.

E eu pergunto: Haverá algum lugar do mundo em que levar uma sapatada na cara não seja um insulto ultrajante? Haverá alguma cultura que interprete uma boa sapatada como uma demonstração de afeto? O que Muntazer al-Zaidi, o atirador de sapatos, quis fazer foi ferir fisicamente Bush, um ato bárbaro. Presumo que os sapatos fossem os objetos à mão que ofereciam a melhor aerodinâmica e o melhor potencial de dano para os propósitos do jornalista. Afinal, com os detectores de metal, nada preenchia os mesmos requisitos: um bloco de notas, uma caneta, mesmo um laptop, nada disso voaria tão bem e causaria tanto estrago quanto os tais sapatos.

Não resta dúvida de que sapatos ocupam um lugar baixo na cultura árabe. Mas são apenas regras de etiqueta, porque não há nada na religião islâmica contra sapatos. Deixar à mostra a sola quando se senta com as pernas cruzadas é considerado de mau gosto, porque ela é imunda. Pela mesma razão, não se deve entrar com sapatos numa mesquita, mas novamente isso tem a ver com etiqueta, não é um mandamento religioso: o Profeta Maomé às vezes rezava com sapatos, às vezes sem. Citaram ditados muito freqüentes no mundo árabe: "Fulano não vale a sola do meu sapato" ou "Fulano é da altura do meu sapato", tudo isso significando que Fulano não vale nada. Mas é exatamente como o nosso "Fulano não chega aos meus pés". Quando da tomada de Bagdá, iraquianos batiam com sapatos na cara da estátua de Saddam, derrubada ao solo. Provavelmente porque chutar ferro fundido provoque dor. Eles também batiam com sapatos em quadros de Saddam, talvez porque seja mais fácil tirar os sapatos do que procurar outro objeto para servir de porrete. Tudo isso pode ter levado a imprensa mundial a exagerar no simbolismo da sapatada. Árabes que usam túnica e lenço na cabeça, quando querem agredir alguém, arremessam o turbante, mais fácil de tirar do que os sapatos. O jornalista também chamou Bush de "cachorro", e todos lembraram que o insulto provinha do fato de que o Profeta Maomé considerava cachorros sujos. O mundo cristão não liga a mínima para o que o Profeta disse, mas, convenhamos, ninguém pelas bandas de cá vai se sentir elogiado ao ser chamado de cachorro.

No fundo, trata-se de uma tremenda injustiça contra o gênio do arremessador de sapatos. O sujeito demonstra ter uma inventividade ímpar, consegue enganar o serviço secreto americano, e tudo o que dizem dele é que ele quis insultar Bush usando os sapatos porque são símbolo de mau gosto para os muçulmanos? Em eventos com a presença de autoridades é impossível entrar com objetos que possam ser usados como arma. Estive na convenção democrata em Denver, e não podíamos entrar com maçãs ou laranjas, mas com água, sim (se bebêssemos um gole). Um guarda explicou: maçãs e laranjas facilitam a pontaria, porque fazem um percurso reto e direto, enquanto garrafinhas ziguezagueiam. Sapatos eram liberados. Até surgir Muntazer al-Zaidi. Ele olhou para os pés, sentiu o peso de seus sapatos, experimentou a sua aerodinâmica, e pronto: percebeu que tinha duas armas nos pés. É como Bin Laden, que transformou o avião numa arma de destruição em massa. Se aqueles solados grossos atingissem Bush, não sabemos as conseqüências: cegamento de um olho, afundamento craniano?

O que me intriga é como estarão os pés dos repórteres na próxima vez em que um presidente americano estiver em solo estrangeiro. Estarão descalços ou será inventado algum dispositivo anti-sapatada, como um vidro na frente do entrevistado?