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ALI KAMEL
DICIONÁRIO
LULA
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com preconceitos (palavra que uso aqui em seu sentido literal, de ideia pre-
concebida). Tanto os que o apoiam quanto os que o rejeitam politicamente,
quando avaliam a posição de Lula a respeito de qualquer assunto, em sua
maioria fazem-no sembase real oumétodo. Lula é coerente ao longo do tem-
po? Lula tem, sobre ummesmo tema, ideias opostas dependendo do público
para quem está discursando? Ele se sente confortável diante do capitalismo
ou se mostra como um socialista de carteirinha? Em que se apoiam as suas
opiniões, avaliações, conceitos, conclusões, afirmativas, certezas? Ou ain-
da: há alguma base de onde tudo isso parte? Quais são as suas formas de
construir um discurso e de comunicar esse mesmo discurso? Enfim, se há
uma resposta a todas essas questões, ela não é possível sem um mergulho
profundo em suas palavras. Não há outro jeito, nunca há.
Personagem de ponta da história do Brasil nos últimos trinta anos, pro-
tagonista, até aqui, de todas as eleições presidenciais depois da redemocrati-
zação do país, o primeiro operário a ser eleito presidente da República, Lula
merece ter o seu pensamento esquadrinhado, medido, avaliado. Uma tarefa
que, certamente, vai requerer o trabalho contínuo de um batalhão de histo-
riadores e cientistas políticos por décadas a fio, até que uma imagem mais
nítida do homem e do político possa começar a emergir.
No Brasil, não temos grande tradição de analisar a retórica dos presiden-
tes, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, para citar apenas um
país. Ali, as palavras do líder da nação são objeto de estudo praticamente
desde a independência, há mais de duzentos anos. Em todas as grandes uni-
versidades americanas (Harvard, Yale, Stanford, Princeton), em seus depar-
tamentos ou institutos de ciências políticas, há, frequentemente, linhas de
pesquisa nesse campo. Emmuitas outras universidades, o interesse pelo as-
sunto é também enorme, com programas dedicados exclusivamente a este
estudo: University of Maryland, University of Pennsylvania, University of
Texas, Indiana University, American University e Texas A&M University.
Nesta última, o “Program in Presidential Rhetoric” é uma unidade de pes-
quisa, neste caso do departamento de Comunicação, voltada para o estudo
de todos os aspectos da Presidência que envolvam o uso da linguagem e
que possam influenciar as crenças, os valores, as atitudes e as ações do pú-
blico. Numa busca rápida na livraria virtual Amazon, podem-se achar 298
livros sobre retórica presidencial: os trabalhos esquadrinham múltiplos
aspectos da fala dos presidentes, dos mais remotos aos mais contemporâ­
neos (naminha pesquisa, encontrei alguns livros de citações, mas nenhum
“dicionário”, como este que agora entrego ao público).
domínio público. Por maior que seja a espontaneidade, as palavras são
sempre medidas, pensadas, refletidas, o que limita o conhecimento sobre
a opinião que os homens públicos têm dos fatos e fenômenos que nos cer-
cam. Lula não é exceção.
Ou é?
De certa forma, sim e não. Não, porque todos os políticos têm um mes-
mo comportamento. E sim porque Lula tem uma peculiaridade: ele gosta
de discursar e, em grande medida, como se verá, de improviso. Desde a pos-
se até 31 demarço de 2009 (quando encerrei a pesquisa para este livro), Lula
fez 1.770 discursos contra 1.164 de Fernando Henrique Cardoso emperíodo
semelhante (de janeiro de 1995 a 31 de março de 2001), 52% a mais. Emmé-
dia, Lula fez umdiscurso a cada dia útil, sendo que, em alguns casos, foram
cinco emmenos de 24 horas. E, embora seja avesso a entrevistas exclusivas
ou coletivas formais, Lula concede com uma frequência enorme as entre-
vistas que o próprio Palácio do Planalto chama de “quebra-queixo”, aquelas
em que o rosto do presidente fica cercado de microfones e gravadores. Uma
fala assim tão volumosa e cotidiana acaba por burlar, frequentemente, os
controles típicos dos políticos: quando se fala muito, em palanques ou em
entrevistas corridas, o autocontrole reflexivo se torna menos presente.
O volume de declarações tem outra característica: torna possível ve-
rificar a consistência das opiniões no decorrer do tempo. Dei-me conta,
então, de que os discursos e entrevistas de Lula, assim como o programa
radiofônico
Café com o Presidente
, poderiam ser ummanancial, que, se bem
pesquisado, daria acesso à opinião de Lula a respeito de inúmeros desafios
com que se defronta o país. Mais: permitiria saber o que ele diz sobre a
vida, sobre os temas que tomam o noticiário, como ele lida com conceitos
como família, filhos, democracia, fome, eleições, aborto e tantos outros.
Uma informação, paradoxalmente, até aqui desconhecida.
Porque, embora cotidianos, os discursos e entrevistas de Lula chegam
ao noticiário demodo fragmentado, o destaque indo apenas para a pequena
parte com relevância jornalística e, às vezes, dado o excesso, nem mesmo
isso. Os assessores próximos e repórteres setoristas são os únicos a ouvi-lo
sempre, não se sabe com que nível de atenção. Para o cidadão comum, po-
rém, é literalmente impossível ter uma noção de conjunto sobre o que diz
o presidente: em todos nós, o que fica é uma impressão difusa e, mesmo
assim, restrita aos assuntos mais constantemente abordados. Uma situa-
ção como essa torna difícil fazer emergir um Lula mais próximo do real,
e a consequência disso é que a maior parte das pessoas, ao analisá-lo, lida
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